Apabico


autoria de Cecília Jorge

da série Tacho do Diabo

Revista Macau Maio 1994 - II série nº 25




A presença do minchi em muitos dos pratos macaenses, designadamente nestes apabicos, e o quase cerimonial na escolha exacta dos molhos e acompanhamentos põem um pouco a descoberto a afirmação da sua identidade cultural

 

Termo de origem indiana ou malaia. apa significa, na dóci língú maquista, um bolinho de farinha de arroz, arredondado ou chapado, e quase deslavado de brancura. Cara de apa!, pretende, assim, ser um insulto, mais ou menos grave consoante o tom de voz e as circunstâncias...

Mas o caso muda logo de figura quando à apa se junta um bico, porque apabicos, tal como minchi, são palavras que fazem despertar a gulodice enraizada no macaense.

É que o apabico é presença sempre desejada num chá gordo, uma tradição cada vez menos frequente no convívio dos macaenses, neste seu berço (que não. segundo sou levada a crer, junto das outras

comunidades macaenses emigradas, pelas informações que nos têm chegado sobre o seu modo de vida).

Trata-se de prato extremamente simples e pouco vistoso, mas também saborosíssimo nessa mesma

singeleza. Um pastelinho redondo de pele ténue, macia e quase elástica, recheada — vejam só! — com mais uma das milhentas variantes de minchi.

Desta feita, um minchi de porco picadinho com rábano ou com hortaliça de salmoura, chung-tchói, que também faz perder a cabeça aos filhos-da-terra. E o apabico, que se serve sempre quente, a fumegar até, costuma estar nas vizinhanças da bebinca de nabo (ou rábano) e do lacassá (a massa frita de "aletria" de arroz), não só para criar alguns problemas de opção difícil ao comilão (ao emado, como também se dizia por cá, em patoá), como também porque todos exigem a companhia de um molho de malaguetas que ninguém aceita trocar por outro, quando disponível.

Eis a força do lat-chiu tchéong chinês, molho baratinho e pobrezinho, dantes, feito localmente (tal como o nosso molho de ostra) e exportado em garrafinhas com um rótulo que (se estão ainda lembrados) nos apontava para um colorido junco de pesca de velas enfunadas, duas malaguetas e uma; menina sorridente (vá lá perceber-se porquê...) 

Hoje, volta e meia, a modernização prega-nos partidas, e eis que nos trazem, pressurosos, Tabasco,

ou um qualquer óleo de malaguetas... Qui saiam! (Que pena!) Porque a predilecção vem de longe,e o lat-chiu tchéong, na versão macaísta, é bem antigo. Chamava-se chili missó, chili (da malagueta) e

missó, da pasta de feijão de soja e sal (do japonês miso, segundo Graciete N. Batalha no Glossário do

Dialecto Macaense, 1977).

Num velho e curioso caderno manuscrito de receitas, cedido por Antonieta Pacheco Jorge, percebe-se que, para o chili missó, se deve escolher chilis maduros, limpar de pevides, colocar num frasco com um pouco de sal e deixá-los secar ao sol durante alguns dias. Remexe-se de vez em quando. para os desfazer. Coam-se e pisam-se num almofariz e então (e aí é que está o busílis), misturam-se com mui-garganta salgado, parte do molho coado, e alho picado. Querendo, pode-se juntar também um pouco de vinagre, e a dose é a lavar o almofariz.

Engarrafam-se, entornando previamente por cima da pasta, para a conservar, um pouco de azeite, ou

(óleo de) gergelim. Mui-garganta, para que se saiba, é uma ameixa chinesa ácida (sünmui) que se usa,

salgada, no preparo de vários molhos. O "cognome" deve-o às propriedades medicinais que tem para

valer aos males da garganta.

E o apabico, chama-se assim precisamente pela sua forma, provida de um bico, conseguida mediante a valente beliscadela que se lhe dá ao fechar depois de o encher, ou entafular, de recheio. Nesse recheio é que as versões diferem, como aliás em quase todas as receitas macaístas que costumam pautar-se pelos gostos e pela perícia de cada família: já encontrei apabicos com recheio enriquecido com cogumelos chineses, os tung-ku ou sombreros, ou mesmo orelhas-de-rato (fungos). Mas o minchi,

de porco, é uma constante, claro está.

E a propósito disso, Armando da Silva, da União Macaense da América, num apontamento interessante que nos enviou (extraído da Newsletter da UMA) refere-se exactamente à importância que o minchi tem como elemento definidor e demarcante da identidade cultural do macaense.

Se buscarmos as origens remotas de alguns dos ingredientes básicos que costumam figurar nas muitas receitas de minchi, poderemos chegar também, por associação de ideias, ao importante papel desempenhado por Macau, nos seus primórdios, como entreposto e encruzilhada, a ligar os principais portos de comércio do século XVI.

Olhem bem para a cebola amarelinha de Goa, o rábano (cha-pui) de Maloca, as orelhas-de-rato de

Cantão, o nabo (daikon) de Nagasáqui, o inhame cincomás, de Manila, o fan si (vermicelli de Amoy,

e ainda o grão-de-bico, a ervilha e as batatas de Lisboa.

Armando "Pinky" da Silva, ao assentir que o nome minchi vem de mince (picar miudinho) num "pidgin English" falado em Hong Kong no século XIX, considera, no entanto, que a origem deste picado pode vir do quema, ou kheema de Goa, uma carne de vaca picada com cebola e temperada com especiarias. O minchi macaense, diz, é uma afirmação da identidade, pelo simbolismo que envolve a sua preparação e apresentação: o clássico, de porco, deve levar pimenta branca, cebola, alho e tec yau (um sutate especial, de cor clara), e ser servido sobre uma dose de arroz branco (cozido, sem sal), encimado por

um ovo estrelado, cujo branco da clara e amarelo da gema representam as cores do catolicismo.

Dois vegetais de origem mediterrânica costumam acompanhar o prato de minchi (quer fritos,

quer em caldo), como demonstração da nossa identidade de origem portuguesa: o agrião (que vai com

o minchi de porco) e os espinafres (com o de vaca).

Apabico, minchi e identidade cultural. Pois claro!

 

 Receita

massa:

farinha de arroz: 500 gramas

água: 5 dl

banha: 2 colheres sopa

sal: q.b.

recheio;

carne de porco: 250 gramas

chung-tchói (hortaliça

de salmoura)

ou rábano (de salmoura): 150 gr

há mâi (camarão

miúdo seco): 1 coler sopa

cebolinho(picado) 3 pés

molho de soja

sal, pimenta – q.b.

óleo ou banha – q.b.

 

- Recheio: Picar bem a carne de porco, temperar com (pouco) sal e pimenta. Lavar e picar bem a hortaliça (ou o rábano) de salmoura e os cubos de soja. Escaldar, deixar amolecer os camarões secos, e depois passar por água fria e secar.

Num tacho, frigir o cebolinho em banha (ou óleo) e juntar a carne de porco, deixando cozer.

Acrescentar a hortaliça de salmoura (ou rábano), voltando de vez em quando para não queimar, e em seguida os camarões e uma colher de sopa de molho de soja. Juntar uma ou duas colheres de sopa de água e logo a seguir os cubos de soja. Deixar cozer por três a quatro minutos em tacho tapado,

 

- Massa: Levar a água com a banha e uma pitada de sal ao lume e deixar ferver. Juntar a farinha de uma só vez, mexendo muito bem, até cozer a massa. Deixar arrefecer e amassar até amaciar.

Dividir a massa em bolinhas dó tamanho de uma noz, formar um buraco no meio carregando com 0o polegar; rechear as bolinhas com o recheio.,de carne, voltando a fechar, e tornar um bico apertando com o polegar e o jndicador da mão.

Colocar os apabicos, bem espaçados num prato com crivo untado com óleo, e cozer em banho maria. Servem--se muito quentes, acompanhados de pratinhos de soja, temperada com pimenta e óleo de sésamo, e de moJbo de malaguetas, ou chili missó (lát-tchiu çheong}.

 

 Agradecimentos a Cecília Jorge e à Revista Macau

  Publicação Junho de 2011