O "ETERNO RETORNO" DO ANO NOVO CHINÊS

Em Fevereiro de 2010, o Boi deu lugar ao Tigre

e assim aconteceu também em 1986

NÃO raro magia e mito surgem na mesma trama de idéias, crenças, práticas, rituais. Mas as mitologias históricas e ancestrais, que por tal facto não deixam ainda frequentemente de estar vivas e ser reanimadas, revelam em certos aspectos sagrados e profanos factores bastante mais ligados, do que eventualmente possa parecer numa primeira abordagem, ao quotidiano artístico, social e até mesmo político e económico dos povos e culturas que, por uma forma ou por outra, as sustentam e prolongam. Todo o dinâmico envolvimento permanentemente enraízado num «eterno retorno» celebrado anualmente, sem aparente perca do seu tradicional fôlego festivo sobretudo em regiões onde a maioria da população é de etnia chinesa, faz relembrar esse salto para a vida, embora talvez apenas de duração cíclica e breve, em que o real e o imaginário se desdobram e confundem num instante mítico de simplicidade na não-irrealidade da existência sonhada que constitui a comemoração do Ano Novo Chinês.

 

A OCIDENTE, O TIGRE

 

UM ocidental em Macau, onde se comemoram em harmoniosa consonância as festividades mais típicas das duas comunidades em presença (a chinesa e a portuguesa) recomeça duplamente o ano: no 1 de Janeiro do clássico calendário gregoriano e ainda na data em que recair o Ano Novo Chinês de acordo com os cálculos do calendário lunar. Deste último, um repórter da Nam Van em sentida excursão deu-nos uma descrição realista acompanhada de elucidativas ilustrações dos festejos no Território do ano transacto (Nam Van N.o 10, «O Kung Hei Fat Choi na 'Cidade Flutuante' - A celebração de um ritmo ou a viagem ao fundo da História», 1 de Março, 1985).

Também, mas através de uma incursão menos lúcida, para o que contribuiu a ignorância tanto do cantonês como do potongua (língua oficial da R.P.China com algumas modificações do antigo mandarim), se tentou desvendar parcialmente alguns dos mistérios da tradição do Ano Lunar (Nam Van N.o 9, «O Recomeço do Ano Chinês», 1 de Fevereiro de 1985). O leitor pode ainda informar-se das tipificidades de cada um dos animais, que correspondem a ciclos de 12 anos, da astrologia chinesa e que emprestam igualmente o seu nome e simbologia a um ano chinês (Nam Van N.o 19, «12 signos chineses dizem o futuro Festas preparam chegada do Ano do Tigre», 1 de Dezembro, 1985).

Qualquer dos temas anteriormente abordados por forma necessariamente incompleta, mereceria renovadas e mais profundas descobertas para serem contadas. Entretanto o tempo urge, uma vez que para uns o ano já é novo – (1986) mas outros continuam ainda no velho, num aparente paradoxal desafio à «duração do instante» que neste espaço é simultâneo de «tempos» diferentes, - o do Búfalo (ou Boi) que se despede tranquilamente esperando que o do Tigre lhe suceda rugindo, sem dúvida de entusiasmo, com o rebentar de panchões. estridentes e fogos de artifício coloridos, as trocas de saudações benéficas e votos de felicidades (Kung Hei Fat Choi), os risos das crianças. Em cada instante algo começa ou recomeça - uma vida, um ser, a História, um dia, um ano - ou simplesmente se dá o «eterno retorno» do presente.

Na China Imperial, o culto dos antepassados continuou a ocupar um lugar de destaque na religião embora com um novo carácter, principalmente nas cidades, onde se tornou muito mais moral, simbólico e abstracto. Ligava-se, sobretudo, com os ritos funerários e uma forma de reconhecimento da autoridade imperial pelos bons serviços dos seus oficiais consistia na permissão para decorarem os seus túmulos, ou os dos familiares, com signos especiais dos quais se distinguiam as esculturas nas colunas funerárias: os Dragões a Este e os Tigres a Oeste, encarregados de conferirem às sepulturas uma orientação correcta.

Na mitologia dinástica, a metalurgia era a arte e ofício maisconsiderada e importante. O Tigre Branco do Oeste, para além de merecer o destaque de rei dos animais, tinha-lhe atribuídos uma estação do ano, o Outono, e um elemento que era precisamente o metal.

Na mitologia chinesa faz-se igualmente referência a um tigre vegetariano denominado Tsou-yu, cuja aparição era tida como uma manifestação auspiciosa da ajuda do Céu, que originou o brotar de nascentes de água pura no local, a partir de então sagrado, em que surgiu.

Durante a dinastia Chan, os guerreiros usavam um elmo para lhes proteger a cabeça nas batalhas e a parte do elmo que lhes defendia a face apresentava a forma da cabeça de um tigre.

Tigres em bronze constituíam as figuras decorativas mais comuns da dinastia Chou (século X A.C.) por se atribuir a proveniência do poder que originou esse período dinástico ao Oeste, direcção que pertence exactamente ao Tigre e a qual este animal é representativo.

Assim, os tigres nunca deixaram de ser venerados como símbolos do Ocidente que era igualmente a direcção do Paraíso do Oeste e de Khun-lun (Montanha sagrada de grande beleza natural e com vários picos, concebida com a forma de um quadrado no topo, tal como a própria terra, e banhada por inúmeras águas na base; Khun-lun era também a designação do palácio do Senhor do Céu). No entanto, apesar de serem honrados, os tigres eram animais temidos pois acreditava-se que se um homem fosse devorado por um deles a sua alma se tornava escrava do tigre atacando as almas de outros homens, pairando sobre as suas mentes, atormentando-os.

É muito possível que a frase, que marcou determinado período da História recente da China, atribuída a Mao Zedung (Mao Tse Tung) - «o imperialismo é um tigre de papel» encontre as suas raízes significativas no facto do referido animal estar intimamente ligado à direcção ocidental.

Uma das crenças mais comuns também relacionados com o Tigre era a de que este animal possuía a capacidade de repelir demónios contra os quais os próprios deuses domésticos não tinham qualquer poder. Assim, a protecção do tigre era especialmente requerida no 5º dia do 5º mês lunar. Como consequência daquela superstição, os batentes das portas das casas apresentavam frequentemente a forma de uma monstruosa cabeça de tigre.


ORIGEM REMOTA

 

A origem da comemoração do Ano Novo Chinês está por determinar com exactidão e as diferentes lendas em seu torno resultam numa clarificação ainda menor. No entanto, levando em conta que as tradições se acumulam, transformam, se radicam e interligam ao longo dos tempos, numa ou mais etnias raciais, através de um processo complexo na mesma medida em que é humano e geralmente moroso, pode entender-se que, pelo menos, todos os chineses vão buscar os seus primórdios a uma época muito remota na antiga História da China.

 

Os grandes festivais agrários, marcados pelo ritmo do trabalho rural, eram acontecimentos, desde datas recuadas, de grande importância para a população camponesa, sobretudo em duas ocasiões do ano muito precisas: quando terminavam os trabalhos domésticos, desde a fiação ao arrecador do grão, no interior da casa, ocupação mais afecta às mulheres e decorrente, pela sua natureza do princípio yin, no início da Primavera e, quando findavam os trabalhos no campo, de lavradio, sementeira, colheita, no exterior, na terra propriamente dita, tarefa a que se votavam principalmente os homens e de carácter predominantemente yang, no começo do Outono.

Ambos constituíam momentos de alegria, de relaxamento, trazidos pelo dever cumprido e consequente recolha do seu usufruir, em que cada célula familiar se podia orgulhar das riquezas obtidas perante os outros e que favoreciam gestos menos restrItos, trocas mais generosas e, portanto, se tratavam, de períodos que convidavam naturalmente às relações e interligações entre grupos e que se restringiam quase só à família, fechada em si mesma dedicando-se aos seus afazeres diários.

Para além de introduzirem uma série de aspectos diferentes que abalava de forma positiva as pessoas da vida monótona que levavam durante o resto do ano, estas

práticas de associações e assembleia de grupos a níveis muito mais alargados, em determinadas alturas do ano, despertavam a consciência individual e até egoísta para um espírito comunitário e de interdependência. Também influenciaram enormemente o desenvolvimento da religião chinesa, quer nos cultos privados como nos públicos, dos Antepassados e evidentemente dos agrários e até o próprio culto do Céu, que surgiram e se formaram destes festivais. Nestes predominava a fertilidade tanto natural (da terra) como humana (pois desenvolviam-se e manifestavam-se mais facilmente os contactos entre as pessoas e, consequentemente, entre homem e mulher, com reflexos directos no seu relacionamento sexual concreto). Nos festivais o espírito doméstico revelava-se com todo o seu peso enquanto, simultaneamente, se criava e construía o sentido social em termos nitidamente pragmáticos de uma sociedade «inteira»,

Talvez uma das razões que torne a festividade do Ano Novo a mais importante para os chineses seja precisamente a de congregar todos os aspectos referidos e que ainda hoje fazem parte integrante das comemorações: reuniões familiares, de amigos, entre grupos; manifestação da abundância através do uso de roupas novas, pagamento de dívidas, refeições com iguarias especiais, troca de presentes (por exemplo, os tradicionais «laisis» - envelopes de cor vermelha contendo dinheiro); os rituais do culto dos Antepassados, dos deuses do Lar com especial relevância para o deus Fogão que transporta o seu relatório informativo anual do Imperador de Jade, presença clara do culto do Céu...

Por outro lado, demonstra e revela sem hesitações, hoje em dia sobretudo entre a população rural ou da mesma marcada ascendência, o elemento fundamental de todas as crenças, e até mesmo de todas as tradições chinesas, que consiste na existência de uma ligação profunda (e indissolúvel) entre o mundo da Natureza e a sociedade humana,



A IMPORTÂNCIA DO CALENDÁRIO

 

ANTES ainda da organização feudal ter sido estabelecida na China, o .conjunto de regras sociais, que Integram as crenças antIgas respeitantes ao mundo natural e à sociedade humana, tais como a realização de casamentos em comum, a união marital dentro ou fora do mesmo ramo familiar, as danças dos concursos ritualizados, a própria reincarnação das almas, a chegada das chuvas, a transição entre estações climatéricas e muitos outros factos, constituiu-se primeiramente como um corpo desordenado - a sua sistematização, em ambos os campos racional e prático, fez-se tendo como base o Calendário.

 

Assim, a criação de um Calendário foi na realidade um trabalho de organização religiosa que se apoiava numa «ideologia» directiva formada pelos conceitos de yin e yang - princípios activos e simultaneamente categorias reais e concretas, opostos mas complementares, de cuja acção decorriam a ordem natural e a ordem humana - que no início eram usados simplesmente como um modo de classificação de toda a existência (visível, invisível, coisas e seres, sistemas de idéias, práticas religiosas, etc.), possuindo e transmitindo toda uma série de atributos e qualidades dos quais sobressaem o masculino e o feminino (aliás, primeira e principal divisão da sociedade agrária primitiva). No entanto yin e yang desde muito cedo assumiram capital importância no pensamento filosófico (e por interacção também religioso) chinês e se tornaram entidades cosmológicas para os astrónomos. Na formação do Calendário é de salientar que o Espaço surgia da oposição entre yin e yang e o Tempo da alternância entre eles.

Dos tradicionais concursos de canções (em que não raro o elemento ou grupo feminino dava réplica aos masculinos) em que os camponeses punham em forma poética as ocorrências naturais e outras da sua vida, como o desenrolar já convencional dos Festivais agrários, foi possível reunir-se um vasto e importante conjunto de provérbios e ditados plenos de sabedoria popular e de canções-poemas, fundamental por desempenhar a função de arquivo memorizador (com utilização a curto prazo pelos próprios participantes na sua feitura) e pela sua característica de periodicidade respeitada, o que permitiu o seu registo em termos de calendário. No fim das colheitas e antes do Ano Novo, com o objectivo de manfiestar gratidão por tudo o recebido e também para auspiciar beneficamente a partida do Inverno, os camponeses chineses mantinham o costume de cantar em coro as tarefas e os dias do ano que terminava.

Este calendário poético cantado mostrava a obediência votada no passado e a vinculação à sua continuação no futuro à lei da harmonia entre as acções de todos os homens e de todas as coisas. - O Calendário (no sentido em que o temos vindo a descrever) foi e permaneceu para os chineses a lei suprema, válida ao mesmo tempo para os homens e para a natureza.

É bem provável que entronque aqui a origem do famoso e velho almanaque chinês, o Tong Seng, continuamente reeditado como acontece novamente este ano(Nam Van n." 19, artigo cit., pág. 4).

O calendário popular desempenhou, além do mais, um papel crucial na sobrevivência até aos nossos dias de uns poucos mitos dos primeiros tempos, devido ao registo .directo em forma poética das características principais dos festivais antigos.



as festividades em São Paulo / Brasil

 

As festividades aconteceram no Sábado e Domingo de 6 e 7 de Fevereiro, praticamente o dia todo.  No Sábado houve o desfile inaugural pela Rua Galvão Bueno em direção à Praça da Liberdade, onde estava montado um palco para as várias apresentações da comunidade chinesa, tanto da China continental bem como de Taiwan. Incluiam-se nelas, dança de leão, lutas marciais de academias de kung fú, desfiles de trajes chineses com a participação também de brasileiros, côro de crianças chineses, ensino da escrita chinesa e tantas outras.  No Domingo repetia-se o módulo com novas e variadas apresentações.

A cultura e presença chinesa veio para ficar em São Paulo, onde se concentra a maior parte da comunidade, em números oficiais, mais de 200 mil.  Os brasileiros começam a apreciá-la e aprendem aos poucos a diferenciar a japonesa, com 100 anos de imigração, com a chinesa.  O bairro oriental da Liberdade, ao lado do Centro comercial, já conta com a maior presença chinesa, antes dominada pelos japoneses.  Nova geração chinesa, nascidos no Brasil, começa a despontar no cenário, muitos frutos da mistura com os brasileiros, lembra os macaenses.  Qual o motivo? Pelo facto de falarem o português com seus rostos mestiços.  Alguns até pouco falam o chinês, que em São Paulo, houve-se tanto falar o cantonense como o mandarim.  A comunidade de Taiwan ainda domina os meios de comunicação, como o jornal, exemplo da Americana, mas não se vêm conflitos, uma convivência normal.

Os restaurantes e lojas de venda de produtos alimentícios, além dos mais variados produtos da China, são suficientes para abastecer e matar as saudades chinesas.

Na região do comércio popular da Rua 25 de Março, a maior parte das lojas são de chineses.  Na época de Natal ou nos feriados, chega a ter um movimento de quase um milhão de pessoas, superlotando as ruas.  Até dizem que muitos chineses emigraram do Paraguai (fronteira com o Brasil, a 1000 km de S.Paulo, conhecido pelo seu "porto livre de taxas") para a região de 25 de Março.  Nesta região até se vêm lojas chinesas, tão típicas às que vemos em Macau, e seus comerciantes lá vivem bem no seu estilo típico das suas origens.  Para o macaense, um passeio para compras revive Macau além de poder saborear boa comida chinesa que inclui um restaurante vegetariano de "chai" (comida de bonzo). Rogério Luz-São Paulo

 



Publicação Agosto 2010