Trio Macaense (Adalberto Remédios, John Santos Hetherland e Clemente Badaraco) tocam Dia da Espiga. Voz: Telma Antunes Brito




TUNAS DE MACAU

CONVÍVIO E FOLIA


de Veiga Jardim

Revista Macau II série nº 13 - Maio 1993

 


Tendo o Carnaval como pretexto e a música como razão de ser, as tunas trazem-nos recordações de uma cidade antiga, depositária de uma herança cultural que se perdeu nos tempos

 

As "tunas" ou grupos de músicos esfalfavam-se nos bandolins, nas violas e violinos, nos eukaliles e outros instrumentos, em marchas e valsas, entre brincadeiras carnavalescas. Antes de chegarem à casa que iam "assaltar", percorriam as ruas tortuosas e estreitas da velha "cidade cristã", passando obrigatoriamente pela Praia Grande, com dezenas de mascarados atrás, em cauda, desfolhando brejeirices, com grande espanto de circunspectos chineses que  não tomavam parte e, no íntimo, censuravam aquele cortejo de loucos, próprio da "gente bárbara".

(Henrique de Senna Fernandes in Amor e Dedinhos de Pé)


Ao abordarmos qualquer manifestação artís­tica própria de Macau seria necessário que compreendessemos, primeiramente, a riqueza que encerra esta cultura de raízes tão pecu­liares, plantadas em dois continentes, e que, graças aos caprichos da História, encontrou neste pequeno espaço de terra, incrustado no continente chinês, refúgio e abrigo. O cosmopolitismo que sempre este­ve presente na cultura macaense fez com que esta, ao adoptar como seus traços de outras culturas, não se limitasse ao exíguo espaço geográfico existente ­isso se não interpretarmos a expressão macaense exclusivamente como resultado da união entre portugueses e chineses mas, ao contrário, a ela emprestarmos um sentido mais vasto, a exemplo daquilo que aconteceu com o Brasil onde a misci­genação racial foi de tal ordem que acabou por dar origem a uma nova cultura, com características próprias e com uma predominante presença cultu­ral (naturalmente adaptada, de contrário não sobre­viveria) dos povos "invasores".

Estas influências são encontradas, em diferen­tes gradações, nas diversas actividades e estratos desta sociedade que se formou em torno do mara­vilhoso entrelaçamento dos continentes europeu, asiático e, em alguns casos, africano. Assim, é possível entrever, como por exemplo, na culinária macaense, vestígios da cozinha malaia, indiana, timorense, angolana (entre outras) para além, obviamente, da portuguesa e chinesa.

 

Parece-nos, portanto, arriscado e temerário tentar aprisionar este fenómeno cultural exclusivamente dentro de dois grandes extremos (português e chinês). Ele não se esgota aí, o que vale dizer que a cultura macaense não é, ao contrário do que muitos julgam, o meio-termo entre o caldo verde e a dança do leão...

Podemos afirmar, sem muito medo de errar, que, essencialmente, a cultura macaense traz em si uma mensagem predominantemente ocidental, a qual, por consequência natural do convívio, acabou por sofrer as influências dos usos e costumes orientais. Somente assim é que podemos explicar a presença, nesta região, de algo tão próprio de Portugal como são as tunas. E é também, pela mesma ordem de ideias, que observamos uma gradativa diluição dos hábitos ocidentais, mercê da, cada vez mais intensa, participação da comunidade chinesa nos destinos do Território.

Graciete Nogueira Batalha, na introdução do seu Glossário do Dialecto Macaense1 tece algumas considerações de interesse: Apesar disso [de o povo macaense ter estado, durante séculos, isolado da mãe-pátria] e de tão cercado pela influência tão absorvente da China e de tão desconhecido no seu próprio país de origem (que nem suspeita como está aqui presente), tem-se conservado obstinadamente português nos costumes, na educação, na mentalidade e, consequentemente, na língua. O que não quer dizer que se tenha mantido completamente impermeável à influência chinesa, o que seria pouco natural e até indício dum isolamento, que não existe, em relação ao imenso povo que, dentro e fora da cidade, nos circunda.

 

Nascidas no Carnaval

 

Segundo o Lello Universal as tunas são definidas como grupo de estudantes ou empregados de comércio que organiza concertos musicais na própria terra, ou em outros locais, [o mesmo que] orquestra de estudantes... De um modo geral, ainda hoje podem ser encontradas nas associações universitárias portuguesas, agrupamentos que recebem este nome a exemplo, entre muitas outras, da Tuna do Orfeão Universitário do Porto que, em anos passados, chegou até a gravar um disco. Usualmente formadas por jovens estudantes que dedicam alguns dos seus momentos de lazer à prática de um instrumento de corda dedilhada, as tunas são constituídas usualmente por instrumentos portáteis, uma vez que grande parte da suas apresentações decorre no meio dos desfiles de rua. Nesta perspectiva, os instrumentos mais comuns nas tunas são o bandolim, o cavaquinho, a guitarra, o ukulele (eukalíli), a viola e, em algumas circunstâncias, também o violino. É de salientar também o facto desta formação instrumental variar de acordo com as "posses" de cada grupo e dos locais onde se apresentam: quando em local fechado, acrescentava-se uma bateria e, se houvesse à mão, um contrabaixo, caso contrário, eram só mesmo os bandolins e as violas. Estes dispunham-se, basicamente, em quatro grupos: os bandolins, divididos em duas vozes, encarregavam-se da melodia; e as violas, igualmente divididas em dois grupos, tinham a seu cargo o acompanhamento.

Herança directa das tunas portuguesas, as tunas de Macau sempre foram presença obrigatória no Carnaval e em outras festas populares:  tunas houve muitas, entre os anos 30 e fins de 40, já que nem o período da guerra tirou aos macaenses o gosto pelo convívio e pela folia. Nomes como a Harmonia e a Tuna Macaense são ainda lembrados por quem participou nos assaltos e desfiles carnavalescos.

Viveram muito do entusiasmo dos foliões e da carolice de quem tivesse umas patacas a mais para dispensar: os patrocinadores, que se limitavam, afinal, a pagar as cordas das violas, guitarras e cavaquinhos, esgotadas de tanto dedilhar, e uma lauta ceia ao pessoal. Os instrumentos, quase sempre de corda (também a rapaziada era da corda...) e com muito uso, pertenciam aos próprios tunantes a quem também se exigia disponibilidade e talento.

Salvo raras excepções, as tunas faziam-se e desfaziam-se com certa facilidade. Tratando-se de associações de constituição livre e espontânea, muitas vezes bastava qualquer dissídio sobre a chefia da tuna (posição ambicionada pela popularidade que granjeava), para que o conjunto desafinasse.

As tunas formavam-se por altura do Carnaval e de uma especificidade local - o Micareme (cerca de 40 dias após o Entrudo), nascida do facto das pessoas não se contentarem com uma semana de folia e tentarem prolongar a festança, mesmo contra as críticas dos párocos que achavam muito pouco adequado foliar durante a Quaresma.

O elemento feminino, que se destacava nos bailes e desfiles de mascarados, surgia nas tunas apenas como porta-bandeira. Hoje, muitas chegam a ser recordadas mais por este estatuto do que pelo seu nome...

As tunas tocavam alto, música alegre e especialmente marchas muitas das quais trazidas de Portugal e interpretadas tal-e-qual ou então adaptadas ao doce dialecto de Macau, o patois. O sucesso popular de "Oh careca tira a bóina", repetiu-se em Macau na versão "Sium (senhor) careca", de autoria do poeta e escritor macaense José Santos Ferreira (Adé).

Julga-se que tenha sido a partir da década de 60, com um reavivar da tuna, que esta passou a funcionar mais ou menos regularmente (e em moldes semi-profissionais), tocando em festas e chás-dançantes, tendo alargado também o seu repertório.

A necessidade de convívio musical dos macaenses não se esgotava, porém, nas tunas e festas do Carnaval e Micareme. Macau teve os seus músicos e compositores e viveu - tal como nos serões de província em Portugal - os concertos ou saraus familiares, na casa de Bernardino Senna Fernandes ou de Américo Marques, onde cada membro da família tocava um ou mais instrumentos e se reuniam regularmente parentes e amigos para a audição de valsas e tangos ou música erudita.

À busca de outras informações históricas acerca das tunas fomos até à Escola Comercial Pedro Nolasco conversar com o professor Mário José Nogueira, personalidade cativante pela simplicidade e simpatia que, muito gentilmente, nos falou um pouco da sua vida e das suas participações nas tunas em Macau. Pelo interesse histórico que encerra, transcrevemos, com ligeiras adaptações, o diálogo em discurso directo.

 

assalto de Carnaval a uma residência particular da Rua Central (ca.1930)


Depoimento de um tunante

(Veiga Jardim entrevista Mário José Nogueira e Filomeno Rocha)

(legenda: VJ-Veiga Jardim / MJN-Mário José Nogueira / FR-Filomeno Rocha)

VJ - É com grande alegria que cá estou a ter esta oportunidade de conversar com o professor Mário José Nogueira, músico...

MJN(sorridente) - ...eu não sou músico, perdão; um músico amador apenas...

VJ - ...e membro da tuna.. .Esperança?

MJN - Não, não. Apesar de ter participado em tunas desde os meus tempos de estudante, presentemente não faço parte de nenhuma; os membros mais antigos ou já morreram ou então dispersaram-se por aí fora: uns para os Estados Unidos da América, outros para Portugal, outros para a Austrália, de forma que, infelizmente, essa gente que tocava connosco está dispersa ou já morreu. Eu próprio tenho 60 anos de idade e sou o mais novo de todos... Quando estou mais folgado, junto-me com alguns dos remanescentes das antigas tunas para reviver aquelas músicas de antigamente e também para não perder a prática. De um modo geral reunimo-nos em minha casa uma vez por mês. Tocamos juntos desde as 8.30 à até meia-noite, às vezes até à 1 hora, só por brincadeira, sem maiores pretensões. É tudo o que temos agora, 5 ou 6 elementos.

VJ - O que é que o senhor sabe sobre a história das tunas em Macau? Já havia tunas antes da guerra do Pacífico?

MJN - As tunas começaram em força depois de 1920 e foram morrendo a partir da década de 50.

VJ - Naquele tempo, naturalmente o senhor era criança, mas, mesmo assim, tem alguma lembrança de quantas tunas havia em   ?

MJN - Que eu me lembre, havia em Macau cerca de 4 ou 5 tunas. Cada bairro formava a sua tuna. Era praticamente distribuído por freguesias: a freguesia de São Lázaro tinha a sua tuna...

VJ - ...era como as bandas...

MJN -.. .as bandas eram outra coisa. Formadas por instrumentistas de sopro, os seus elementos eram polícias, fiscais da Câmara, etc.. Tocavam nos coretos do Jardim Vasco da Gama (já demolido), ao lado da Escola Luso-Chinesa e do Jardim de São Francisco, em frente ao Colégio Santa Rosa de Lima, a pouca distância do lugar onde hoje funciona uma biblioteca chinesa. Havia também um outro em Santo António, naquela praça em frente à Casa Garden.

VJ - As tunas também se apresentavam nos coretos?

MJN - Não. Os coretos eram utilizados quase exclusivamente pelas bandas. Para além das bandas oficiais, da PSP e do Município, havia, naquela altura, outras que eram constituídas por elementos civis, militares reformados ou semi-militarizados, os quais se apresentavam regularmente nestes espaços que há pouco citei. As tunas eram outra estória. Eram formadas por elementos civis, na sua maioria, que percorriam as ruas da cidade em marcha. Atrás, acompanhando, vinha um cortejo de pessoas fantasiadas de bobo, mascarados, etc.. Era uma coisa típica do Carnaval.

V J - Mas também se apresentavam fora do Carnaval. Ou não?

MJN - De um modo geral a existência das tunas estava condicionada às comemorações do Carnaval. É claro que durante o resto do ano não ficávamos completamente inactivos. A cidade mudou muito. Antigamente realizavam-se enormes feiras, quermesses, festas religiosas e, muitas das vezes íamos lá tocar.

VJ - O senhor recorda-se das tunas que havia no seu tempo de rapaz?

MJN -Não de todas, mas posso citar algumas: Tuna Esperança, era a mais afamada e completa, com cerca de 30 elementos. Funcionou durante as décadas de 30 e 50, se a memória não me falha; anteriormente, entre as décadas de 20 e 30, existiu também a Tuna Águia, com cerca de 20

e tal músicos. Lembro-me também da Tuna Lyra.

(Neste ponto da conversa aproxima-se o sr. Filomeno da Rocha (FR), também músico e remanescente dos bons tempos das tunas de Macau. É colega e amigo do professor Mário José Nogueira. Junta-se para nos ajudar, através de suas lembranças, a recontar um pouco dessa história.)

 

FR - No total existiam umas 4 ou 5. Para além destas que já foram citadas, havia mais duas, uma em Santo António e outra na Rua Nova à Guia cujo nome, assim de repente, não consigo lembrar. Já la vão muitos anos...

MJN - Recordo-me que havia também a Tuna Lusitânia, que teve o seu período áureo nos anos 30 e 40. Nos anos 50 houve a Tuna Negro Rubro que durou perto de dez anos. Nos finais da década de 60, princípios de 70, foi fundada a antiga Tuna Macaense, que, no entanto, não tem nada a ver com o actual agrupamento que recebe o mesmo nome.

VJ - Como é que surgiam as tunas?

MJN -As tunas de Macau surgiram como imitação das tunas de Portugal. Praticamente foi a transposição de uma tradição. Mesmo cá eles eram constituídas exclusivamente por amadores, o que significa que a grande maioria tocava mesmo de ouvido... Eram compostas indistintamente por macaenses e metropolitanos. Por outro lado, Macau possui várias freguesias: São Lourenço, Santo António, São Lázaro, Sé, Nossa Senhora de Fátima e, normalmente, cada uma delas formava a sua própria tuna. No

entanto, não quero dizer com isso que não houvesse elementos de uma determinada freguesia que participassem simultaneamente de uma tuna "rival".

VJ - Então havia alguma rivalidade...

MJN - ...exactamente pelo facto de todos os anos eles inventarem uma marcha nova. Esta marcha era estreada nas vésperas do Carnaval e as tunas disputavam quem é que tinha a marcha mais bonita. Havia um compositor muito afamado chamado Alderico Viana que escreveu algumas marchas que obtiveram um grande sucesso naquele tempo. Muitas vezes as tunas encontravam-se nas ruas, entrecruzavam as bandeiras, em modo de cumprimento, faziam uma contradança e, em seguida, cada uma seguia o seu caminho, sem hostilidades.

VJ - O senhor já disse que, para além do Carnaval, as tunas também se apresentavam em outras circunstâncias. Que tipo de repertório era então executado?

MJN - As tunas, de um modo geral, tinham um repertório muito vasto. Eu pessoalmente cheguei, durante toda a minha vida, a tocar de memória mais de 150 melodias, entre slows, marchas, rumbas, valsas, etc.. No Carnaval inevitavelmente tocávamos marchinhas. Nos bailes fechados tocávamos música de dança. Mas deixe-me contar-lhe a história: dois meses antes do Carnaval, reuníamo-nos duas vezes por semana para ensaiar. É bom frisar que nenhum de nós recebia um avo. Mesmo os uniformes e as fantasias eram comprados com dinheiro do nosso próprio bolso. Aqueles que não podiam, recorriam ao presidente da tuna que, de um modo geral, era alguém com mais recursos e que garantia este tipo de despesas. Também era através do presidente que os clubes e as pessoas em geral convidavam as tunas para participar dos bailes e festas. Havia em Macau diversos clubes que organizavam grandes bailes, durante os quatro dias do Carnaval. Estes eram o Clube Macau (no Largo de Sto. Agostinho), Clube Militar (no Jardim de São Francisco), Clube dos Sargentos (cujo verdadeiro nome era Clube Recreativo 1° de Junho, situado perto do mercado da Mitra). e o Clube MELCO (situado na Areia Preta. onde hoje é o Bairro Hip-On). Havia os bailes do Sábado Gordo e do Domingo de Carnaval. Na terça-feira havia o Carnaval dos Casados e na quarta-feira de cinzas praticamente já não havia mais nada. Éramos. por exemplo. convidados para tocar no Clube Macau. durante um baile que começava às 9.30 da noite. A tuna saía da sua freguesia de origem e. tocando, marchava pela cidade até o clube, Muitas vezes fizemos longos percursos debaixo de chuva. desde o Tap-Seac até lá em cima. no Largo de Sto, Agostinho. Tinha horário para começar mas não tinha para acabar, Tocávamos até às 5 da manhã e depois ainda íamos à Novena de N.S.dos Passos, que normalmente coincidia com a época do Carnaval. Comíamos qualquer coisa - depois de já termos, durante a noite. comido não sei quantas vezes - e.finalmente. voltávamos para casa. Era divertido, mas muito cansativo.. .

VJ - Como eram os "assaltos" às casas?

MJN - Havia as casas das famílias de mais posses que. quase sempre eram escolhidas para os assaltos de carnaval. Entrávamos e tocávamos música de dança. O mais curioso disso tudo é que, de um modo geral. eles sempre tinham uma ceia previamente preparada para nos oferecer.

VJ - Mas era feito de surpresa ou combinado com antecedência? As pessoas não se assustavam com a chegada das tunas?

MJN - Conforme. Às vezes era absolutamente de surpresa e outras.vezes era combinado com um elemento da família que queria fazer uma surpresa aos outros. Tinha muita graça mas, muitas vezes. já tocados pelo vinho. cometíamos pequenas imprudências. No entanto, as famílias tradicionais macaenses e metropolitanas que cá viviam já conheciam estas brincadeiras de modo que, mesmo quando estávamos mascarados, ninguém se assustava. Era uma coisa bastante familiar,

VJ - A que factor (ou factores) atribui o senhor a diminuição de interesse pelas tunas?

MJN - A grande crise económica que passámos após a II Guerra Mundial levou a que muitos macaenses deixassem a sua terra em favor de destinos como o Canadá, Estados Unidos, Brasil e Austrália. Para além disso, parece-me que a sociedade macaense ocidentalizada de antigamente tinha uma outra estrutura. Era composta maioritariamente por locais e metropolitanos. Os casamentos realizados entre macaenses. ou entre macaenses e metropolitanos, faziam com que as tradições se perpetuassem através das novas gerações, Mesmo aqueles casamentos realizados entre homens macaenses e mulheres chinesas mais ocidentalizadas não comprometeram as nossas tradições portuguesas. Havia um grande interesse pela cultura e pelas coisas que os antepassados fizeram. Em Macau, naquela altura, havia perto de 3 ou 4 mil militares, muitos dos quais se casaram com macaenses e ainda hoje aqui residem. Com o passar dos anos. e, mais tarde, com a revolução de 25 de Abril de 1974. aquelas centenas de militares que nos acostumamos a ver pelas ruas, desapareceram. Ficaram os macaenses e os chineses. O cenário da cidade mudou completamente. Com todas estas alterações, os macaenses acabaram por sofrer alguma influência deste convívio mais próximo com a comunidade chinesa, seja na língua, na culinária ou nos costumes.

Naqueles casamentos onde a componente chinesa é mais forte, as nossas tradições foram sendo esquecidas. dando lugar a usos e costumes que não são nossos.

FR - Outro factor importante que também contribuiu de alguma forma para o declínio das tunas foi um decreto do governo (vide abaixo) que começou a vigorar depois da II Guerra, o qual proibia o uso de máscaras durante os festejos populares. Com aquela confusão, fruto da rivalidade entre japoneses, comunistas e nacionalistas, era muito perigoso para a população civil que pessoas mascaradas transitassem pelas ruas.

MJN - Os músicos não se mascaravam, mas havia umas boas dezenas ou centenas de foliões que se fantasiavam e aos quais se poderia, eventualmente. misturar um grupo de agitadores pondo em risco a segurança das pessoas. Em Macau havia um carnaval de rua espontâneo e as tunas eram, de certa forma, o ponto alto destas festividades. Os sócios dos clubes juntavam-se ao grupo, durante a marcha. de modo que quando chegávamos ao fim do percurso a festa já estava bastante animada...

 

Após estes depoimentos, plenos de ricas vivências, fica-nos a impressão de que, quase sem sentir, Macau, abrigo provisório de uma cultura tão peculiar, foi perdendo um pouco da sua personalidade com o desaparecimento das tunas. As guerras, a emigração e as revoluções - circunstâncias históricas imponderáveis - conduziram caprichosamente os destinos deste pequeno pedaço de terra que, em breve, não mais pertencerá aos seus filhos.

No entanto, onde estiverem, se cá não puderem permanecer, levá-Ia-ão consigo, no seu sangue e nas suas memórias, pois na verdade, são eles os protagonistas da sua própria história.


Carnavais no Ginásio do Liceu (finais dos anos 30)


(Decreto do Governo após a II Guerra)

ADMINISTRAÇÃO DO CONCELHO DE MACAU

Edital

Eduardo de Madureira Proença, capitão de cavalaria, Administrador do Concelho e Comissário de Polícia de Macau.

Faço saber que, durante os dias do próximo Carnaval, é proibido, sob pena de desobediência aos mandados da autoridade, o seguinte:

A Exibição de danças, música, paródias e grupos carnavalescos, cujos directores não tenham obtido a necessária licença do Govêrno da Colónia, não podendo os mesmos solicitar, sob pretexto algum, esmolas ou dádivas;

Atirar das casas, ruas e outros I ugares quaisquer cousas que possam molestar, sujar ou, por qualquer forma, incomodar as pessoas ou deteriorar as suas propriedades;

A divagação de mascarados no bairro chinês;

A apresentação de mascarados com trajos ofensivos das crenças religiosas, da moral e dos bons costumes.

Para conhecimento de todos e para que se não possa alegar ignorância, é êste edital, com a respectiva versão chinesa, publicado no Boletim Oficial desta colónia, e afixado nos lugares públicos do costume.

Administração do Concelho e Comissariado de Polícia em Macau, 8 de Janeiro de 1945

O Administrador do Concelho e Comissário de Polícia, Eduardo de Madureira Proença, capitão de cavalaria.





Agradecimentos à Revista Macau e ao Veiga Jardim


Publicação Junho 2011