A existência de piratas na ilha,
a sua posterior erradicação constituíram, de
facto, um acontecimento decisivo
na história da ilha e da própria presença portuguesa.
Sobre o acontecimento, monsenhor
Manuel Teixeira escreveu uma monografia baseando-se em diversos documentos e jornais da época.
O problema parece ter sido levantado
pela primeira vez em Maio de 1910, quando um chinês de Hong Kong comunicou ao proprietário do semanário macaense «A Verdade»,
a ocorrência de determinados incidentes.
No dia 5 do mesmo mês, alguns
piratas haviam desembarcado na aldeia chinesa de Tong-hang, do distrito de San-neng, assaltando uma escola e levando para
a ilha da Taipa 18 prisioneiros. Posteriormente os chefes da quadrilha dirigiram várias cartas aos habitantes da aldeia exigindo
resgate e ameaçando com a morte dos cativos e a destruição da aldeia.
Os acontecimentos foram relatados
ao advogado e director do jornal «A Verdade», Constâncio José da Silva, que posteriormente comunicou ao Governador de Macau,
Eduardo Marques.
Veio a saber-se mais tarde que
os reféns se encontravam em Coloane num cárcere privado, juntamente com mais 50 pessoas raptadas em várias aldeias chinesas
próximas de Coloane.
Ao contrário do que se verifica
nos nossos tempos, as ilhas não se encontravam tão acessíveis a quem vivesse na cidade, e era guardada por um exíguo destacamento
de cerca de vinte homens que, segundo monsenhor Teixeira, «mal chegavam para guardar a fortaleza e o quartel de Ká Hó, quanto
mais para patrulhar as aldeias e as montanhas» .
A situação desprotegida da ilha
terá assim contribuído para que os piratas a escolhessem para seu quartel-general, actuando depois em terras da China, vizinhas
de Coloane.
Os piratas ter-se-ão estabelecido
progressiva e subrepticiamente ao longo dos anos, escondendo os seus intentos e apresentando-se como cidadãos pacíficos.
«Iludindo as autoridades –
diz monsenhor Teixeira na sua monografia - foram-se ali infiltrando no decorrer dos anos: aqui montavam uma mercearia, além
uma loja de peixe; uns trabalhavam nas pedreiras, outros entregavam-se à agricultura; por isso tinham de ter casas para as
suas «famílias».
O autor acrescenta ainda sobre
o assunto: «é de crer que os seus vizinhos soubessem que espécie de gente eram eles, mas não os denunciavam por duas razões:
eles não os incomodavam, pois a quadrilha fazia as suas operações em terra chinesa e para ali traziam os seus roubos e as
suas armas; se os denunciassem, sujeitavam-se a terríveis represálias. O melhor era deixá-Ios em paz. E assim se passaram
dezenas de anos».
O sequestro de habitantes de Tong-hang,
acompanhado do envio de uma
carta pedindo resgate não foi
caso único. Na sua comunicação ao Governador, Constâncio José da Silva juntou exemplos de três cartas enviadas pelos raptores
em tempos diferentes à aldeia de Tong-hang e outras.
As cartas denunciam a existência
entre os piratas de um grau considerável de organização denominando-se «Ang Hgui T'ong» (Sociedade de Perfeita Justiça).
É reveladora a linguagem utilizada
nas mensagens enviadas às assembléias dos anciãos das aldeias em que os piratas se referem ao seu «grémio» como se de uma
instituição de direito se tratasse.
Diz uma das cartas:
«Esta sociedade manteve sempre
as melhores relações com as três aldeias de Tong-hang, Pac-seac e Hông-kóng, não indo jamais incomodá-Ias. Os vossos
sin-teang (tipo particular de
embarcação de pesca) e sampán (pequenas embarcações de vigia) têm transitado livremente sem que jamais vos hajamos feito dano
a uma sapeca».
Em seguida fazem referência ao
incidente do assalto à escola como uma medida de represália na sequência de um incidente anterior:
«Mas como no dia 17 da primeira
lua do ano passado, tendo ido os camaradas deste grémio à aldeia de Ho-chao .e assaltado ali um negociante de apelido Chou,
os anciãos das mesmas três aldeias - quem o poderia supor?! - cobiçosos do prémio com que o mesmo Chou os recompensaria, houvessem
pretendido cercar e acossar esses nossos camaradas e levar-Ihes o rebanho (dos prisioneiros) para se apresentarem com este
a receber o referido prémio, os camaradas deste grémio ficaram indignados à vista de um tal procedimento».
A denúncia feita pelo director
de «A Verdade» pareceu no entanto decisiva para a intervenção das autoridades portuguesas.
Um primeiro passo foi dado pela
polícia secreta chinesa que .foi a Coloane na tentativa de libertar os prisioneiros por meios pacíficos, mas sem sucesso.
A primeira tentativa para a resolução
do problema foi feita depois da nomeação do tenente AIbino Ribas da Silva para comandante e administrador das ilhas da Taipa
e Coloane.
Foi no dia 12 de Julho de 1910 que 45 soldados
de infantaria foram a Coloane
com a missão de capturar os piratas
e libertar os reféns. O que veio a revelar-se como não sendo fácil.
O grau de organização dos piratas
e a forma como estavam implantados na ilha era ainda desconhecido e só relativamente tarde foi tomada consciência detando
eseu quartel-general estava naquela ilha.
A
primeira tentativa resultou em fracasso em que as forças portuguesas foram obrigadas a bater em retirada.
Acontecimentos decisivos seguiram-se
à suspensão das garantias constitucionais na Taipa e Coloane, decretada no próprio dia do incidente.
Logo no dia 13 a ilha de Coloane
foi bombardeada, tendo participado no ataque a lancha canhoeira «Macau», comandada pelo primeiro-tenente Anselmo Mata e Oliveira,
que foi mais tarde Governador de Macau.
Apesar do ataque a Coloane ter
sido decisivo, obrigando os piratas a refugiarem-se nas montanhas e grutas, não significou o fim da pequena guerra que se
prolongou, de facto, até dia 23 de Julho.
Os acontecimentos durante os
onze dias de combates e buscas, revelaram o verdadeiro alcance da implantação dos piratas nas ilhas.
Após o bombardeamento da vila
de Coloane e a fuga dos piratas, o Governador Eduardo Marques telegrafava para Lisboa informando: «piratas abandonaram todas
as povoações levando quantos géneros alimentícios encontraram constando estar a quadrilha numerosa, superior a 310, em cavernas
onde tem depósitos de munições».
A quadrilha acabou por ser completamente
destruída mas só depois de, usando uma expressão de um dos jornais da época, «todos os pássaros terem sido expulsos do ninho».
Os acontecimentos foram acompanhados
dia-a-dia pela Imprensa de Hong Kong e pelas autoridades chinesas, que elogiaram a. actuação portuguesa.
COLOANE
não esqueceu os acontecimentos de 1910. Fazer perguntas sobre os piratas não soa como estranho, se toda a gente sabe do que
se trata e tem qualquer coisa para dizer. Nem que seja com algum humor, «familiares dos piratas. Todos são descendentes dos
piratas, menos a minha família», disse-nos um comerciante da vila de Coloane.
Sobre os piratas diz-se, pelo
menos a um desconhecido, muito mais do que se sabe. Um passado que se guarda, uma relíquia que se protege como pilar de uma
identidade.
A sra. Cheong Tai Iao tinha cinco
anos de idade em 1910. No dia 13 de Julho daquele ano, encontrava-se a bordo de uma embarcação, junto ao Pagode, acompanhada
da mãe, da tia e da avó, quando os navios portugueses fizeram fogo. A embarcação em que se encontravam foi atingida e incendiou-se.
Cheong Tai Iao ficou ferida sob as balas portuguesas e sua mãe morreu. Quando os portugueses começaram a disparar a avó gritou
«amigos, não somos pIratas».
«Quando viram os piratas,. Eles,
não vieram, eles estavam cá», disse-nos a senhora Maria Teresa Xavier de Assis, viúva de um militar português dessa época.
Os testemunhos são na generalidade
coincidentes. Os piratas reinavam mas, por um cento consenso pragmático. Eles tinham armas e a presença portuguesa era pouco
expressiva. Quando partiam para as suas operações passavam em fila indiana, armados, pelas ruas da vila. Pouco mais era necessário
acrescentar para se saber quem podia dar ordens.
Apesar do seu poder, os habitantes
de Coloane sublinham que os piratas não eram agressivos para a população da ilha. Eles realizavam as suas operações sempre
fora da ilha, em terras chinesas.
Os nomes dos piratas ainda hoje
são recordados. Por exemplo Lam Ká Si, ou Leong Sin Yi, pirata benemérito segundo alguns, cuja antiga residência é uma casa
em
ruínas situada na rua dos Negociantes,
na vila de Coloane. Morreu há 40 anos e ainda tem filhos em Hong Kong.