Da
leitura das estrelas ao pragamatismo
de Pedro Dá Mesquita, em Lisboa
Revista Nam Van nº 23 - 1 de Abril de 1986
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Quis
o destino que os landins, povo aliado com os deuses, que o fizeram feiticeiro, se tornasse no exemplo
mais acabado de soldado africano ao serviço do exército colonial português.
Estávamos
em 1904 e pelo regulamento assinado pelo comissário régio de Moçambique, Mousinho de Albuquerque, todos os homens válidos
seriam sujeitos a uma inspecção, a ter lugar de dois em dois anos, para servirem nas companhias expedicionárias e nas companhias
de indígenas, estas integradas exclusivamente por elemento landins.
Da passagem
de uma vida que se perdia na memória dos tempos, feita pela leitura das estrelas, dos ventos e das nuvens, colocando cada
landim numa posição superior e desta superioridade vivendo, a história militar portuguesa coloca estes homens de sorriso permanente
e de selváticas paixões, numa alta estima a julgar pelo testemunho do próprio herói do aprisionamento do Gungunhana, que escreveu
a dado passo no seu livro «Moçambique» que os landins eram de todas as tropas de negros ao serviço de Portugal as que revelaram
«maior instinto guerreiro».
Com tão boas
referências, depressa estes homens deixaram a sua terra para
servirem em
Angola, Timor e Macau, tendo chegado a este último território no ano de 1911, marcando nas cinco décadas seguintes uma presença
regular naquele enclave, então colónia portuguesa.
Para quem conhecesse
os landins por alturas dos finais do século passado, dificilmente imaginaria que este povo orgulhoso se tornasse alguma vez
num soldado disciplinado, temerário, ao serviço de um exército regular.
Armado de escudo,
adornado de peles e com zagaias, com as quais desferiam o primeiro golpe em direcção aos rins da vítima, os landins eram uma
das etnias mais temidas e conhecidas de todo o Moçambique.
Contam as crónicas
que qualquer número de landins, por mais insignificante, que passasse por qualquer aldeia, por mais pobre que ela fosse, quase
que por magia
- não fossem
eles feiticeiros surgia logo farinha para fabricarem o seu pão favorito, sempre acompanhado por um bom número de cabritos
e galinhas
As principais
vítimas desta pilhagem permanente era o povo quiteve, que para além de se ver
despojado de boa parte dos seus bens, era obrigado a carregar todos os mantimentos dos landins, pois estes nunca tinham «pegado
em cargas».
Aliás, conta-se
uma história bem curiosa sobre os costumes deste povo que fez um pacto com o céu.
Nas suas permanentes
deambulações, os landins conceberam uma forma assaz curiosa de tributação: abriam um furo no alto da cobertura cónica das
palhotas circulares, obrigando depois a enchê-Ias até que estas se recusassem a receber mais.
Esta tendência
de acumular veio a manifestar-se bem mais tarde em Macau, embora já a nível individual e sob a forma de pré (2 mil escudos
em 1950) por todos os
elementos voluntários
que estiveram em comissão de serviço no território, ficando célebre um desembarque em Lourenço Marques, em 1932, que vinha
de tal forma provido de mercadoria que pagou 18 contos de réis em direitos aduaneiros, e isto não obstante a «vista grossa»
por parte dos funcionários da alfândega.
O primeiro par de botas
Providos de
uma excelente compleição física - cuja média ultrapassava o metro e setenta de altura - com uma boa capacidade de aprendizagem,
com um bom espírito combativo e de temperamento alegre, os landins foram considerados as melhores tropas coloniais portuguesas.
Após um recenseamento,
eram sujeitos a uma recruta de três a seis meses onde lhes era ministrado o manejo das armas, o aprumo militar e uma
instrução mínima. Depois eram enviados para Angola, Timor e Índia na situação de obrigatoriedade, tendo sido recrutados
mais de cem mil entre 1916 e 1918, durante a I Grande Guerra.
O primeiro
contigente a embarcar para Macau deixou Lourenço Marques em 11 de Dezembro de 1911 com a 8ª Companhia Indígena, acompanhada
de uma secção de bateria mista.
Com um par
de botas - as primeiras que calçavam na sua vida - um capacete de ferro, que lhes dava um ar muito mais marcial, e com um
uniforme do qual ressaltavam uns largos calções, cerca de duas centenas de landins desembarcaram em Macau nos primeiros dias
de 1912, deixando desde logo uma forte impressão, quer na comunidade portuguesa, quer mesmo na chinesa ao realizarem um batuque
no qual teve papel importante o manejo das terríveis zagaIas.
Devido ao facto
de serem tropas muito bem treinadas e muito disciplinadas, e de serem - segundo Mousinho que as utilizou em primeiro lugar
- «umas sentinelas admiráveis» foram colocados nas Portas do Cerco, ponto nevrálgico, sobretudo após a implementação da República
Chinesa e onde se tinham registado alguns incidentes.
A coronhada landim
Com fortificações
que permitiam a presença de uma companhia, a unidade estacionada nas Portas do Cerco estava sujeita a um trabalho violento,
quer no aspecto físico, devido às constantes vigias nas 24 horas do dia, quer pelos incidentes que se repetiam quase diariamente
com as tropas colocadas do outro lado da fronteIra.
O dia começava
com o retirar dos cavalos-de-frisa pelas 8 horas, que eram colocados a cerca de 30 metros diante das Portas do Cerco, seguindo-se-Ihe
o manejo de armas, colocação nos postos e instrução vária. A tarde, os soldados estavam encarregados de diversos melhoramentos
nas instalações, encerrando a fronteira pelas 18 horas.
Equipados com
espingardas de bom alcance, bazucas, canhões, anti-tanques e várias metralhadoras, as tropas landins colocavam-se em menos
de três minutos nos seus postos após soar o alarme, facto que acontecia nas ocasiões mais díspares para manter a eficiência
da unidade.
Após a natural
apreensão relativamente à recepção que iriam dar aos landins, estes foram bem aceites pelas três comunidades em questão (portuguesa,
chinesa el colegas de armas).
Depressa ganharam
fama de soldados disciplinados, não só através das inúmeras histórias mas também pelas anedotas que se contavam a seu respeito.
Uma delas conta o sucedido com um soldado landim que estava de serviço à residência do governador de Moçambique e deu uma
forte coronhada num director dos caminhos
de ferro do
Transval, que na ocasião (uma greve) insistiu em transpor uma vedação, e que mais tarde iria provocar certos dissabores ao
próprio Mousinho. Instado a defender-se por ocasião de um breve inquérito que ficou arquivado e das razões que o tinham levado
a tomar aquela atitude, o soldado limitou-se a responder: - «Faça, alto, palavra de honra, faça fogo».
O prestígio
junto das comunidades em Macau foi subindo à medida que eles se iam integrando na vida normal da cidade, sendo vistos nos
dias de folga, sempre em grupos, invadindo as lojas centralizadas na Rua Almeida Ribeiro numa azáfama em adquirirem um conjunto
mais ou menos fixo de bens: bicicletas, fatos, máquinas fotográficas, arcas em cânfora e outros objectos que afanosamente
guardavam como penhor de dois anos de comissão de serviço voluntário em Macau com um bom pré (2 mil escudos em 1950) e isto
numa altura em que Macau tinha uma vida mais barata do que em Moçambique ou Portugal.
Por outro lado,
um dos passatempos favoritos dos landins ao chegarem a Macau - conforme nos relata o coronel Pedro Barcelos que comandou uma
companhia dej landins nas Portas do Cerco entrei Junho de 1951 e Setembro de 19521 - era o de se fazerem transportar nos riquexós,
já que parece que «lhes dava um grande prazer o serem levados a custa de braço, pelas ruas de Macau e perante um clima tão
extenuante.
A fotografia de rectaguarda
Fora disso
e para além de umas visitas esporádicas à rua da Felicidade (ninguém poderia ter escolhido um nome mais sugestivo...), o seu
relacionamento foi sempre muito bom, sendo somente de recordar, pelo seu aspecto caricato, um episódio ocorrido em 1931, quando
um grupo de dez soldados e 2 cabos landins foi escolhido para representar as forças expedicionárias de Moçambique na exposição
colonial de Paris.
Como já dissemos,
os landins são dotados de uma excelente estatura física, tendo sido escolhido um deles para servir de soldado tipo para uma
fotografia que iria incentivar os seus conterrâneos por altura do recrutamento.
A semelhança
do que se fez para o «poster» do recrutamento, foi escolhido um grupo que estava estacionado em Macau, que por tradição recebia
os melhores ho
mens; só que
na foto em que se via o oficial branco no meio dos soldados o seu tamanho era nitidamente mais baixo do que o dos seus subordinados,
o que, de acordo com a mentalidade da época, era visto como uma prova de inferioridade.
A solução encontrada
foi simples: preparou-se uma segunda foto, tirada no campo onde se vê uma coluna seguindo na frente os landins e na rectaguarda
o guia, dando assim maior corpulência ao europeu.
Mas a vida
dos landins não foi só este ritual de compras e de actividade militar, facilmente notado pelo «Bayte», uma saudação tipicamente
landim, uma espécie de mistura de sinais que fazem lembrar um aceno e uma continência e que servia como factor de unidade
na vida civil, já que todos os antigos soldados se cumprimentavam deste modo, o que dava ainda mais animação as já animadas
ruas de Macau.
Na sequência
de incidentes fronteiriços o comando militar de Macau achou por bem transferir para uma unidade estacionada na ilha da Taipa
a companhia que tinha estado envolvida, não só para desanuviar a situação como também para evitar futuros incidentes com uma
unidade já por si excitada.
Até ao final,
a companhia limitou-se a fazer missões de observação e de defesa da ilha e a participar, com o acostumado brilho, na cerimónia
do 10 de Junho por ocasião do juramento de bandeira de vários recrutas de Macau, onde realizavam exercícios físicos e demonstrações
militares, completados com um concerto dado pela orquestra de corda e de um coro formado inteiramente por landins, tudo isto
com o mesmo aprumo com que combatiam.
Para definir
estes homens alegres damos a voz ao coronel Pedra Barcelos: «o landim é um pragmático,
cumpre sempre à risca aquilo que lhe dizem», daí talvez o facto de muitos deles terem dado coronhadas na cabeça de muitos
imprevidentes transeuntes, que fugindo ao sol estival numa procura de uma árvore passavam por detrás das guaritas instaladas
nas Portas do Cerco...
Revista
Nam Van é uma edição do Governo de Comunicação Social do Governo de Macau. Na época desta edição o seu director era
Händel de Oliveira. Pedro Dá Mesquita fazia parte da Redacção. As fotografias não têm identificação de autoria,
portanto, é informada a fonte e a responsabilidade pela divulgação (o PMM)