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o livro faz parte da Colecção Notícias de Macau editado em 1952. É o 6º volume, sendo os anteriores,
sendo os 3 primeiros, coletâneas de artigos de Manuel Silva Mendes, o 4º, Contos Chines e o 5º, Lendas Chinesas de Macau.
Perceba o rico vocabulário de Luís Gonzaga Gomes na leitura do artigo ...
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Origem do Nome de Algumas Ruas
POUCAS são as pessoas que se dispõem a cirandar pela parte velha desta cidade, visto que
nenhum interesse desperta no seu espírito indiferente as evocações daquelas transitadas épocas, em que o piso irregular das
congostas e travessas era animado pela cadenciada marcha dos liteireiros, conduzindo em vistosas librés formosas damas toucadas
de finíssimas saraças e empertigadamente recostadas em vistosos almadraques, finamente bordados com doirados canutilhos e
espelhenta lantejoulas, dos seus luxuosos palanquins; quando as janelas das suas espaçosas habitações solarengas se escancaravam
para nelas se assomarem os rostos assustadiços de sedutoras donzelas atraídas por algum desabrido
estrupido de bem quarteado e fogoso corcel,
galopado por donairoso cavaleiro; ou, quando, por estreitas vielas desfilavam os espalhafatosos cortejos de arrogantes mandarins.
Passada a febril época de intensa actividade
comercial e esgotadas as grandes fortunas de fácil aquisição, caíram as ruas desta cidade, num curto período de marasmo, para
tornarem a animar-se sob o rodar de magnificentes carruagens dos seus abastados moradores, outra vez enriquecidos, no efémero
período da fictícia prosperidade advinda. do tráfico de emigrantes.
Vergastada, depois, novamente pela. adversidade,
e desta vez quão duramente, assistiu a cidade o desmoronar das suas falsas grandezas; e, então, as suas apalaçadas residências
foram, uma a uma, caindo nas mãos de credores chineses, para que o produto de irremíveis hipotecas que as oneravam, pudessem
continuar a manter o luxuoso viver dos seus arruinados proprietários, que não estavam acostumados a viver com parcimónia.
Entretanto, há cinco ou seis décadas se tanto,
principou o camartelo do modernismo a derrubar e a destruir, já em nome da salubridade pública, já invocando regras de estética
urbanística, grande parte da cidade medieval. As enviesadas ruas da parte nobre da antiga cidade, por onde os caleches dificilmente
transitavam sem que os tapadoiros das suas rodas esboroassem as paredes das casas, viram então, as grandes lastras de granito
do seu pavimento, substituídas por um revestimento de alvo cimento; as betesgas, os pátios e os becos da parte pobre, um verdadeiro
ludreiro em dias chuvosos, foram calcetados àportuguesa. E, por toda a cidade, os velhos solares e outras casas de habitação,
foram cedendo lugar a novos edifícios, alguns com fachadas interessantes, mas todos desprovidos de conforto.
Nos amplos salões de algumas das velhas mansões
que ainda. se encontram de pé e onde outrora os seus sobrados rangeram com o peso de elegantes e formosos pares que se entretinham
em animados cotilhões, turbulentas quadrilhas ou em mesurados minuetes, que constituíram as principais diversões dos serenins
da. alta sociedade local, em diferentes épocas, vivem hoje, em sistema quase falansteriano, grupos de vinte ou trinta familias
chinesas. As suas janelas tão rasgadas, mas tão adequadas a este clima, parecem que riem sardonicamente da imbecilidade de
quantos passam actualmente por baixo delas, completamente indiferentes à sua passada opulência.
Mas, apesar da sanha destruidora, há no entanto,
ainda alguns bairros na velha Macau, onde se pode disfrutar um pitoresco ciclorânico e que, por isso, vale a pena serem visitados,
principalmente aqueles onde a vida gorgulha febril, mas miserável e funambulescamente, com trágicos recantos de fome e onde
aparecem faces exageradamente acararnadas e lábios vivamente tingidos de vermelho,
pois são neles que podem ser observados certos
costumes, tradições e superstições do povo
chinês, que ainda não perderam o intrigante
atractivo do seu exotismo oriental.
Muito desses sítios, porém, já não são conhecidos
pelos seus nomes primitivos, pois, desusaram-se com a transformação da sua fisionomia original, outros, não obstante as alterações
impostas, por não se sabe quão voluntariosos edis, capricham em reter, pelo menos, em chinês, as designações por que primitivamente
foram baptizados pelo vulgo.
Assim, há um trecho da cidade gue ainda é
conhecido pelos chineses com o nome de Tcheok-Tchâi- Un, em local hoje dos mais populosos e sobrecarregado de casas encostadas
umas às outras e separadas por uma apertada. rede de ruas. Entre nós, é este sitio conhecido por Horta da Mitra e abrangia
todo o terreno que ia desde a antiga rua de Pák-T'âu-Sán-Kâi (Rua Nova dos Cabeças-Brancas, isto é, dos Parses), actualmente
denominada de Rua Nova-à-Guia, até ao Ho-Lán-Un, (Jardim dos Holandeses), ou seja o bairro Uó-LÔng, sendo limitado ao norte
pela Calçada do Gaio, na altura. por onde passava a muralha que noutros tempos cercava a antiga cidade. Todo este terreno
foi outrora ocupado por uma extensa e densa mata e, como há trezentos anos, a cidade era ainda pouco povoada, no intuito de
se fomentar o seu desenvolvimento populacional, foi permitido a um grupo de imigrantes chineses de apelidos Mâk, Tch'iu e
Léong estabelecerem-se ali. Este minúsculo núcleo inicial conseguiu transformar, com o tempo, o local, numa aldeiazinha e
os seus componentes viviam da venda da lenha que podavam na mata e cujas altas e frondosas árvores que a cercavam estavam
sempre cobertas de pássaros que alegravam o basquete com a sua chilreada, dando ao sitio um aspecto de parque. Foi por este
motivo que os chineses deram ao local o nome de Tchèok-Tchâi-Un que quere dizer "Jardim de Passarinhos".
Outro local, cujo nome em chinês ainda perdura,
é a área de Sá-Kóng, vacábulo este que significa "boião de areia" e assim fora chamado porque a sua configuração aparentava
um enorme boião e porque toda aquela depressão formada na falda. do Kâm-Kôk-Sán, ou "Monte do Vale de Oiro", no cume do qual
se encontra hoje o forte de Móng-Há, era toda coberta. de areia. Era aqui que se enterravam os cultivadores indigentes da.s
antigas aldeiolas de Móng-Há e de Lóng-T'in, quando vinham a falecer.
Quanto a ruas, dentre muitas, citamos a da
I-On-Kái e a de Tái-Pôu-Lám cujas primitivas denominações, em chinês, ainda não deixaram de ser usadas.
A I-On-Kái deve o seu nome ao facto de ter
sido fundado nesta rua o primeiro clube chinês denominado I-On-Kông-Si (Sociedade de Amizade e Bem-estar), tendo sido seus
fundadores os mais ricos negociantes desta terra, dentre os quais figuravam os dos apelidos Lôu, Uóng e Hó. Era frequentado
por chineses de alta categoria, tanto de Macau como das cidades convizinhas, que ali se reuniam para se divertirem em ceiatas
ou ao jogo, bem como para tratarem dos seus negócios, que discutiam deitados nas duras camas de pau-preto, enquanto fumavam
o seu ópio servidos pelas mais esbeltas
p'
éi-pá-tchâi do bairro. Apesar do nome desta rua ter sido alterado para Fôk-Lông-Sân-Hóng (Travessa das Felicidades), os
chineses continuam a. designá-la pelo seu primitivo nome de I-On-Kái.
Quanto ao de Tái-Pôu-Lám, que é o troço da
Rua de S. Domingos, que vai desde o ponto em que começa a Rua da Palha até ao Cinema Capitol, foi outrora uma via de prédios
baixos. Por isso, era. todo o dia batida por uma chapada de sol vivo que arrancava chispas de fogo do seu piso escaldante,
sufocando, queimando e cegando com a sua reverberação quem por lá passasse. Para evitar que as plantas dos seus pés fossem
mordidas pela causticante brasa daquele abominável pavimento, os chineses de pés descalços, viam-se obrigados a atravessá-lo
de corrida. Dai o nome de Tái-Pôu-Lám como quem diz, "a largos passos" . Vem a propósito dizer-se que a Rua de S. Domingos
se chama em chinês, Pán-Tchéong-T'óng-Kái, isto é, a Rua do Templo de Tábuas; sendo a origem desta denominação causada. pelo
facto de o primitivo templo ter sido construído em madeira. Esta igreja é, porém, também conhecida entre os chineses, pelo
nome de Mui-Kuâi-T'óng, o Templo das Rosas.
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