Cozinhas Macaense/Portuguesa: A Diferenca Dilui-se
por
Cecília Jorge
Revista
Macau/Ano II/nº 13/Maio 1993
Na imensidade de cores, aromas, sabores e exotismo da comida macaense, não nos surpreende encontrarmos
fortes vestígios de receitas enraizadas na tradição portuguesa e transpostas na íntegra para as mesas de Macau.
A
cabidela - de pato ou galinha - que os macaenses (mas nem todos...) se gabam de deglutir com gosto é, e desde tempos remotos,
prato frequente nas mesas portuguesas, sobretudo do norte do país. Aliás, o aproveitamento do sangue (e não só) tem a sua
expressão mais marcante nas minhotas papas de "sarrabulho" ou no "sarapatel" madeirense que também constam nos poucos manuais
de cozinha macaense e na tradição gastronómica, trazida decerto por quem demandou estas terras longínquas e aqui se demorou
tempo suficiente para fazer enraizar um hábito que não está de todo perdido. Mas o arroz de cabidela, também típico do norte
de Portugal, é que não parece ter conseguido muitos adeptos entre os naturais de Macau ....embora não se saiba bem porquê.
O
pato cabidela, ou melhor Ade Cabidela em patuá macaísta, termo proveniente do português
arcaico adem (pato) que, tal como, por exemplo, azinha (depressa), tardou a cair em desuso na comunidade macaense, é o prato mais vulgarizado de entre os que
incluem o sangue como ingrediente. Não é apreciado pelos mais sensíveis e/ou resistentes à inclinação vampiresca e é certamente
um dos poucos pratos da culinária macaense que, de um modo geral, os chineses não apreciam. E, no entanto, nas chamadas "lojas
de sopas de fita" comem sofregamente tigeladas de sangue de pato ou de porco coagulado, cozido em vapor. Mas desfeito em molho?
Paparocado? Nunca!
Voltando
ao pato, Graciette Batalha, no seu Glossário do Dialecto Macaense refere que se
mantinha, em Macau, pelo menos entre as falantes do patuá maquísta, a distinção entre ade
e pato,já que o segundo - diz - equivalia a ganso.
Cita,
a propósito, o Tractado das Cousas da China e de Ormuz, de Frei Gaspar da Cruz
(1570), em que este descreve uma típica estação fluvial de criação de patos como embarcações que tinham ... h~uas asas feitas de caniçada (...) nas quais agasalham dous ou três mil adens (...) e porque nem sempre pelo tempo
acertam de ficar alg~uas que se nam recolhem, ha por todas as partes muitos bandos de adens brabas, e ho mesmo ha de patos
( Capo IX, na reedição de 1937).
Quando
o missionário dominicano, que viajou cerca de dois anos na China,fala da fartura da
terra e de sua abundança (Cap. XII) diz também que havia muitas galinhas, muitos
patos, infindas adens (...).
Neste
interessantíssimo relato Gaspar da Cruz salienta que os chineses tinham muito e muito
bom trigo com o qual aprenderam a fazer muito bom pão com os portugueses. O
dominicano refere, ainda, que os chineses faziam dos porcos muito singulares lacões,
de que levam muita copia os Portugueses pera india quando Ia vam por via de trato. Que grande festança.
A
diferença, na receita de cabidela praticada em Macau residirá talvez no facto desta dispensar o azeite de oliveira e incluir
açafrão. Mas comum será, decerto, a inclusão dos cominhos, que se afirma dever temperar sempre pratos de cabidela.
Outra
receita que dá um toque português a qualquer mesa é a que incluímos nesta edição do "Tacho do Diabo": trouxas de carne, ou,
como também é por vezes chamada, couve embrulhada. Não é uma receita muito remota, antes pelo contrário. Mas é frequente encontrá-Ia
numa mesa macaense. Distingue-se do prato caseiro original, vulgaríssimo em Portugal, das couves recheadas com salsichas frescas,
porque aqui é sempre feito com carne picada (de porco ou de vaca) e geralmente temperada com molho de soja (vulgo sutate, no jargão culinário macaísta).
O
refogado de tomate em que as trouxas cozem manteve-se sem alteração a dar o indispensável molho apurado que "afogará" o arroz
branco, comido com colher e garfo.
E
não será de mais recordar que a introdução do tomate nos hábitos culinários dos chineses (pelo menos nesta região meridional
da China onde Macau se insere) é atribuída aos portugueses, havendo duas designações para este fruto no dialecto cantonense,
falado em Macau: fàn-ké (pomo estrangeiro) e tai-má-ti
(intraduzível) esta última de óbvia inspiração portuguesa mas em franco desaparecimento com o crescente influxo de imigrantes
de outras regiões chinesas.
Chame-se
como se chamar o tomate, frito ou guisado, encontra-se em algumas receitas tradicionais da cozinha cantonense (refiro-me,
claro está, à caseira), ou como ornamento.
Uma
das explicações mais interessantes para tal facto, que uma breve sondagem de opinião entre chineses nos trouxe, foi a da importância
da cor, ou seja a presença bonita, e sobretudo auspiciosa, duma cor que os chineses tanto prezam: o vermelho.
Se
juntarmos à já famosa máxima dos mestres chineses de cozinha os primeiros a comer são
os olhos, a franca sensaboria que oferecem tomates criados nas hortas chinesas (não acrescentando decerto nada ao sabor
do prato) não custará muito a aceitar tal hipótese...