A PROPÓSITO DA HORTELÃ
 
Cecília Jorge
da série Tacho do Diabo
Revista Macau II série nº 14 - Junho 93
fotos da R.M. sem autor definido

 

Em Macau (decerto também no Brasil) onde as indispensáveis limonadas e refrescos de Verão, só ganhavam com a frescura acrescida de uns pezinhos da dita, há que atribuir-se o seu uso e abuso às exigências do clima e da medicina.

 

HORTELÃ ordinária, hortelã-crespa (ou verde), hortelã-pimenta, aquática (ou do rio), silvestre, francesa, malabar e hortelã-china, são algumas das muitas espécies existentes que podemos encontrar em Macau.

 

E no entanto, nenhuma delas com aplicação, ao que parece, na culinária chinesa, embora sejam de uso frequente na sua medicina tradicional. Atribuem-se-lhes propriedades carminativas e estomáquicas, ou seja, eliminam os gases e aliviam perturbações gástricas ou digestivas. Um chazinho de hortelã-pimenta faz assentar os excessos de qualquer comilão. E com três a quatro folhas da hortelã-crespa em uma chicara d'ágoa fervida, temos um chá excitante, que provoca a transpiração e que se usa nas dores rheumaticas, defluxo, colicas, vomitos espasmodicos e como vermifugo. E quem não recorreu já às inalações antisépticas da mentha contra a constipação e inflamações da garganta e a bronquite?

 

E, contudo, a hortelã, sobretudo a hortelã-crespa, também chamada entre nós "hortelã de sopa" (a que os chineses chamam de "estrangeira" fàn pochó, e os ingleses spearmint ), é bem frequente na cozinhaçam, para usar o termo macaísta. Também apreciada é a hortelã-pimenta (peppermint) embora sempre usada, à cautela, em doses menores... e mais como aromatizante.

 

Mas não admira tal aplicação culinária da hortelã, que se vende, fresca, acessível, em muitos mercados. Dantes, nos quintais e terraços das casas macaenses, havia sempre, portuguêsmente, canteiros e vasos de loureiro, hortelã e estragão, alecrim, segurelha, entre outras ervas-mezinhas. Tenham-se em vista as raízes europeias da cozinha macaense, perfeitamente visíveis nas muitas e fartas sopas, muitas das quais de vegetais passados (nada orientais), azeitadas, onde bóiam os quadradinhos de pão frito e... as inevitáveis folhinhas de hortelã. A menta marca presença mesmo em consommés, como é o caso desta "sopa de aletria" , assim chamada embora nem sempre feita com aletria, mas sim com vermicelli de feijão mungo (fan-si). Faz parte da tradição gastronómica desta comunidade, ou pelo menos de parte dela. É uma receita remota e muitas voltas deve ter dado em inovações e adaptações. Julgo tratar-se de uma daquelas sopas que a dona de casa ou a criadagem se lembrava de fazer, por auto-recreação, e que até dispensava a indicação de um nome, o que lhe dava a liberdade plena de alterar os ingredientes.

 

Aliás não é raro, no caso das receitas tradicionais macaístas haver receitas com ingredientes que condizem com o nome, ou com uma dúzia de designações, ou ainda com dezenas de variantes. Se atentarmos em muitas das receitas manuscritas em patuá, e em cadernos de receitas antigas que foram passando gerações veremos que, por exemplo, nem sequer havia o registo das porções utilizadas para cada ingrediente (por razões de sigilo?). E, quando havia, tudo indica não ter presidido às intenções de quem fez o memorandum deixar os demais (descendentes incluídos) perceber o que estava anotado: 15 avos de sombrelos, 10 avos de água-fogo, 5 sapecas de arroz pulu, etc. Se tal jargão era perceptível para um contemporâneo, a quem 15 avos, numa mercearia chinesa, traduziam o peso exacto dos "sombrelos" (pois assim se chamava aos cogumelos secos chineses, na língú maquísta), a dificuldade de entendimento é hoje tremenda para quem, nos dias que correm, não compra sequer meio-sombrelo com tal ninharia.

 

Mas, voltando à "sopa-sem-nome", talvez resulte, afinal, de uma imaginativa maneira de alegrar um consommé em dia festivo, colorindo-o (com os ovos cozidos), aromatizando-o (daí a hortelã), e dando, a quem o vai beber, algo menos monótono, para entreter também os dentes (as bolinhas de carne, o pão frito, as ervilhas). Um dos fundamentos que pesa a favor de tal hipótese é o facto desses ingredientes serem habitualmente apresentados à parte, para que cada um se sirva a seu gosto e A hortelã comparece também em muitas das versões macaenses da canja de galinha, que, sendo apurada num caldo do galináceo e com muito pouco arroz, difere da grossa e pastosa congénere chinesa, feita a partir de uma quase insípida base de arroz cozido em água, sendo a "substância" e o tempero colocados no final, apenas em breve fervura. E costuma ser de tudo... e muito raramente de galinha. A canja que se conhece em Portugal (e que geralmente até nem leva arroz...) parece ser de origem indiana remota. Ali a conhecem por kanji.

 

Na segunda receita apresentada, de almôndegas com hortelã, as influências são, uma vez mais, de origem européia. E aí é que surge um facto curioso. A hortelã na culinária portuguesa parece ter tradições pouco enraizadas, ou seja, relativamente recentes. Vamos encontrá-la num recheio de carneiro picado, na Beira Baixa, (os "maranhos") e, claro está, no Alentejo, onde aliás era de se esperar porque são incontáveis os cheiros e ervas aromáticas da longa lista de condimentos com se que "trabalha" a culinária na terra do pão e do porco. De todas as paragens onde os portugueses estiveram, na suas muitas andanças e descobertas pelo mundo, parece que foi no Brasil e em Macau, que a hortelã vingou mais na cozinha (e mais no Brasil do que em Macau).

 

A hortelã, sobretudo a crespa e a apimentada, é tida como originária da Europa meridional (os italianos e gregos não passam sem ela...).

 

Na Ásia encontramo-la em grande abundância na comida vietnamita, e também na filipina, na tailandesa e na do Laos. Quanto à China, embora, como disse, não pareça ser muito utilizada na cozinha, surge aí em pelo menos cinco variantes, uma das quais originária da China, como é o caso do chamado "poejo chinês". Em Hong-Kong e Macau, onde a ocidentalização mais se faz sentir (como se viu pela maneira como os queijos, a maionaise e as saladas cruas fizeram carreira) é possível que a modernidade leve a cozinhar também com hortelã.

 

Posto isto, a muito lenta disseminação da hortelã nesta região do globo deve ter raízes mais remotas, atribuíveis a quem comerciou com os orientais, vindo da Europa meridional, já que em Portugal só em finais do século passado o seu uso passou a ser mais generalizado. A salsa, o louro e os coentros (curiosamente chamados erva "estrangeira" pelos chineses e, às vezes, "salsa chinesa" pelos portugueses...) foram sempre o condimento privilegiado da cozinha lusa, mais os poejos, orégãos, manjerona, tomilho, segurelha e alecrim, e não necessariamente por esta ordem, mas alguns a nível geral, e decerto todos eles no Alentejo.

 

Uma consulta a consagrados livros de culinária tradicional portuguesa refere muito pouco ou nenhum uso da hortelã como condimento até meados deste século, e, quando surge, aparece apenas como "cheiro". Algo que se coloca no cozinhado mas que não se come. No Tratado Completo de Casinha e de Copa, de Carlos Bento da Maia (1904), um dos best-sellers da década de 20 (com três reedições), não aparece sequer mencionada a hortelã na relação completa dos vegetais e ervas usadas na cozinha portuguesa ou na longa lista de receitas (algumas das quais hoje já incluem hortelã).

 

A implantação do uso da hortelã terá decerto algo a ver com gostos e temperamentos. E em Macau (decerto também no Brasil), onde as indispensáveis limonadas e refrescos de Verão só ganhavam com a frescura acrescida de uns pezinhos da dita, há que atribuir-se o seu uso e abuso às exigências do clima e da medicina.

 

Mas pouco importa quem quer que a tenha trazido. A propósito da hortelã não se recriará, decerto, polémica semelhante à sino-italiana: se foi Marco Polo que trouxe (ou não) o hábito dos esparguetes, vermicelli ou ravioli à China, onde os min, van-tan ou soi-cáu , são consumidos há séculos, e com a mesma sofreguidão.


 


Almôndegas de Hortelã


carne de vaca (picada)           250grs.

sutate (shoyu) claro               1 colher sopa 

hortelã (picada)                      2 colheres sopa

clara de ovo                            1

fécula de milho                        q.b. (a gosto)

cebolinho (picado)

alho (cortado)

óleo (ou banha)

sal, pimenta,                           q.b.

 

Temperar a carne picada com (pouco) sal, pimenta e sutate (shoyu-molho de soja). Juntar a hortelã e o cebolinho, o alho picado, uma colher de chá cheia de fécula de milho e a clara de ovo e misturar bem, batendo para ligar a massa. Fazer pequenas almôndegas, achatadas, que se polvilham com mais fécula, deixando descansar pelo menos meia hora, em local fresco.

Fritar as almôndegas em pouco óleo ou banha, em lume moderado, deixando alourar no final.




Sopa de Aletria

caldo de carne                        1 litro

vermícelli (ou aletria)              1 chávena (xícara)

carne (picada) vaca ou porco  100 grs.

ovos cozidos                           3         

fécula de milho                        q.b. (a gosto)

cebolinho(a) (picado)

clara de ovo

ervilhas cozidas

cubos de pão frito (em azeite)

óleo (ou azeite)

folhas de hortelã

sal, pimenta                             q.b.

 

 

Temperar a carne, juntar o cebolinho, fécula de milho e meia clara de ovo e fazer pequenas almôndegas que cozem numa pequena porção de caldo, colocando-as só quando este ferver, e por pouco tempo. Retirar e deixar escorrer. DemoIhar o vermícelli (fan-sl) em água tépida, lavar e escorrer.

Aquecer o caldo e deixar cozer o vermícellí durante cerca de dez minutos. Temperar com sal e pimenta e servir imediatamente, acompanhando com os ovos cortados em pedaços, as bolinhas de carne, as ervilhas, e o pão frito.