DOIS IRMÃOS NA PONTE DE COMANDO CONTRA OS PIRATAS DE COLOANE


Passa agora o centenário dos combates contra os piratas na Ilha de Coloane, no que terá sido talvez a última grande campanha naval ultramarina da monarquia. Muita coisa se tem dito sobre o assunto, mas um estudo mais aprofundado sobre o episódio está ainda por fazer.

 

Na generalidade sabe-se bem como as coisas aconteceram e o eco que lhes foi dado não só na imprensa portuguesa como internacional. Permanecem porém alguns detalhes que nunca foram referidos e que vale a pena salientar a propósito desta efeméride.

 

Um deles é o facto de dois dos mais importantes chefes da marinha de guerra portuguesa presentes nas operações serem irmãos.

 

Refiro-me ao comandante do “Cruzador Rainha D. Amélia”, que com os seus fuzileiros forneceu o grosso das tropas de desembarque e ao imediato da Canhoneira Macau, navio que efectuou o bombardeamento da vila de Coloane, barragem de artilharia que cobriu e antecedeu o avanço das forças de assalto.

 

Trata-se de António e Manuel Jervis de Athouguia Ferreira Pinto Basto.

 

António era o comandante do “Cruzador Rainha D. Amélia” que efectuava em 1910 o habitual périplo da marinha portuguesa pelas colónias asiáticas. Manuel era o imediato da “Canhoneira Macau”.

 

Mas enquanto António efectuava a sua primeira viagem ao Extremo-Oriente, já como oficial superior, Manuel era ainda apenas um segundo-tenente que iniciava uma comissão de serviço na colónia portuguesa da China. Uma comissão que haveria de ser longa mais longa do que o inicialmente esperado (o habitual eram quatro anos), recheada de episódios misteriosos e que terminaria num fim inesperadamente extemporâneo e dramático.

 

Manuel Jervis foi o oficial que após o bombardeamento da vila, em Julho de 1910, desembarcou com cerca de 40 fuzileiros que seguiam a bordo da canhoneira para efectuar a ocupação efectiva da vila e das imediações. Só depois disso o grosso das tropas apoiado pela artilharia poria pé em Coloane e iniciaria a escalada sistemática dos alcantis montanhosos da ilha varrendo o terreno de lés a lés numa operação que culminou com o aprisionamento dos últimos piratas refugiados numas grutas do lado oposto ao desembarque alguns dias depois.

 

Manuel Jervis de Athouguia Ferreira Pinto Basto nasceu em Lisboa em 1882 e entrou para a Marinha exactamente ao dobrar do século (1900). O seu primeiro contacto com Macau ocorreu em 1905, quando integrou a tripulação da “Canhoneira Rio Lima”, vazo de guerra envelhecido, que a “Canhoneira Macau” viria a substituir em 1909.

 

Apesar da sua juventude, para além de oficial corajoso, como ficou demonstrado em Coloane, era igualmente dotado de valor intelectual e científico acima da média. Essa faceta é revelada pelo trabalho desenvolvido na determinação das coordenadas geográficas exactas do Farol da Guia.

 

Este trabalho foi tanto mais relevante quanto o “GPS” seria aparelho que só surgiria cem anos mais tarde para banalizar a questão e obliterar de todo bússolas, altímetros e mais ainda sextantes quinhentistas.

 

Na altura, determinar as coordenadas, mesmo de um objecto físico imóvel como era o Farol da Guia, exigia um sem número de operações no terreno, consulta de cartas geográficas e topográficas, cálculos, novos cálculos, correcções e mais correcções que exigiam não só estóica paciência e disciplina como particular rigor e sólidos conhecimentos científicos. O trabalho revelava-se na altura tanto mais importante quanto se negociava nas chancelarias diplomáticas de Pequim e Lisboa a delimitação das águas territoriais de Macau. A sua persistência valeu-lhe um louvor do Governo do Território publicado em Boletim Oficial em Agosto de 1906.

 

Pouco depois, e um ano antes de rumar para a sua última comissão de serviço em Macau, Manuel Jervis, viria a ser também louvado pelo Governo de Lisboa pelo seu trabalho de sondagens e estudos de marés que executou no Funchal (Ilha da Madeira) em 1908 quando fazia parte da tripulação do “Cruzador Vasco da Gama”.

 

Para além dos seus conhecimentos científicos, Manuel Jervis era também particularmente dotado em matéria linguística como o prova o facto de falar e escrever fluentemente chinês, conhecimentos que lhe valeram passagem nos exames formais que prestou em 1917 que o deram como proficiente no dialecto cantonense com nota final de 15 valores.

 

Terão sido estes dotes juntamente com o facto de se encontrar bem integrado no seio da comunidade chinesa local e manter contactos, muitos de alto nível, com Cantão, que fizeram com que se tornasse responsável pelo sector das informações de segurança da Marinha em Macau.

 

UMA DELICADA MISSÃO. Neste âmbito, qual precursor “007” de Ian Fleming, ele próprio se encarregaria de uma das mais delicadas e perigosas missões que lhe foram atribuídas durante a sua carreira.

 

A China levava dois anos de república e Yuan Chi Kay, recebia o poder de Sun-Yat-Sen, preparando-se para criar o ambiente político necessário a fim de restabelecer a monarquia consigo próprio como imperador.

 

Em todo o país as facções digladiavam-se e Guangdong rebelava-se contra o governo central declarando a cessação do resto do país. Saber ao certo o que se passava do outro lado das Portas do Cerco era pergunta a que nem a nossa embaixada em Pequim, nem o consulado português em Cantão conseguiam responder. Principalmente no que tocava às intenções prevalecentes relativamente ao futuro de Macau. Recorde-se que as proclamações nacionalistas inflamadas contra a presença europeia na China tinham subido alarmantemente de tom desde a proclamação da República em 10 de Outubro de 1911.

 

Assim, para tentar esclarecer cabalmente o confuso panorama político Manuel Jervis foi encarregado de se deslocar a Cantão, indagar e depois fornecer relato sério e coerente às

 

aflitas autoridades de Macau, que no interior do Território tinham que gerir também as actividade subversivas de uma miríade de facções e grupos de interesse os mais dispares.

 

Tolerar essas actividades, proibir alguma, ou expulsar líder político errado poderia trazer consequências políticas gravíssimas a curto, médio, ou mesmo longo prazo. A aliar a tudo isso a intensificação do tráfego da marinha de guerra chinesa que cruzava junto às costas de Macau em rotas cada vez mais próximas adensavam as nuvens negras que ascendiam no horizonte.

 

A missão de Manuel Jervis foi coroada de êxito. Depois de vários dias em Cantão e de

 

contactos com as mais diversas fontes aos mais diversos níveis, o oficial da marinha que tinha levado consigo um agente da Polícia Secreta de Macau “disfarçado de boy” (criado particular) regressou com notícias optimistas.

 

Macau podia descansar. Yuan Chi Kai tinha de momento mais com que se preocupar no Norte do que em desenhar estratégias para expulsar os portugueses de Macau, ou os ingleses de Hong Kong, no tumultuoso Sul.

 

Por seu turno Sun Yat-sen conjunturalmente afastado do poder estaria igualmente interessado em tudo menos pôr em causa um território onde continuava a contar com apoio unânime e que em qualquer eventualidade lhe poderia servir para voltar ao exílio, ou regressar à China, como o tinha feito tantas vezes antes sempre que os ventos da política lho impuseram.

 

Depois dessa missão (cujo relatório publiquei há uns anos na “Revista da Cultura ”) Manuel Jervis continuou a efectuar inúmeras deslocações a Cantão, sempre oficialmente justificadas como viagens de turismo e recreio como consta dos arquivos da Marinha.

 

Tudo indica que terá sido através dessas digressões aparentemente lúdicas que o diálogo oficioso entre os governos de Cantão e de Macau fluiu até ao dia 11 de Junho de 1919.

 

Quatro dias depois dessa data os jornais de Macau publicavam uma notícia que chocava toda a gente: - “De chofre caiu no dia 11, sobre a cidade a notícia do falecimento repentino a bordo do Sui-an (vapor que efectuava a carreira regular entre Cantão e Macau) do ilustre 1º Tenente Manuel Athouguia, comandante da “lancha Canhoneira Macau”. É impossível descrever a comoção que de todos se apoderou, sabido como é que o distinto oficial tinha um amigo, um admirador em todo aquele que com ele convivia... O infeliz oficial sucumbiu vítima de uma congestão que em menos de dois minutos o roubou à vida... Foi uma grande desgraça e uma enorme perda para a nossa Marinha de Guerra.

 

O funeral realizou-se em 12, às seis e trinta incorporando-se nele toda a população da Colónia... S. Ex.ª o Governador (Joaquim Augusto dos Santos) acompanhou o cortejo fazendo um discurso junto da sepultura”.

 

Para além das condecorações e louvores que possuía, Manuel Jervis era também detentor da mais alta distinção militar portuguesa; o grau de “Cavaleiro da Antiga e Muito Nobre Ordem da Torre e Espada de Valor Lealdade e Mérito”.

 

Curiosamente, quando consultei o que constava sobre este oficial no Arquivo da Marinha, há mais de uma década, o almirante Vítor Crespo que então era seu director manifestou-se um tanto perplexo.

 

- “Sabe, disse-me, há neste processo uma coisa estranha que é o facto de lhe ter sido

 

atribuída a “Torre e Espada”, mas não constar justificação para tal”.

 

Perante o meu olhar interrogativo o almirante concluiu:

 

-“É que a concessão da “Torre e Espada” tem que ter sempre exarada publicamente a justificação, não é como as outras condecorações”, acentuou destacando: “é a mais elevada distinção de Portugal”.

 

O almirante esboçou então um assomo de subtil sorriso, passou-me as fotocópias do processo para as minhas mãos e não disse mais nada...

 

Ambos percebemos que quaisquer que tenham sido os feitos de Manuel Jervis de Athouguia Ferreira Pinto Bastos, nunca poderiam ser publicamente revelados.

 

Foi um herói e pronto.

 


ligação para o artigo no Jornal Tribuna de Macau - http://www.jtm.com.mo/view.asp?dT=350502004

foto publicado no JTM

 


Publicação Agosto 2010