John "Bijú" dos Santos Hetherland toca Só à Portuguesa, de Pedro Lobo, música de abertura/fechamento da Rádio Vila Verde


QUANDO O FUTURO ERA A RÁDIO...

(um texto de 1994)

 

Quando ainda não havia televisão e a "aldeia global" ensaiava os primeiros passos... era a rádio. Macau, no Extremo-Oriente, não escapou ao balbuciar do fenómeno, conhecendo mesmo a primeira rádio do império português. Estava-se em Agosto de 1933...

 

de Paulo Rego

Revista Macau II série nº 25 – Agosto 1994

 

 

E já lá vão mais de seis décadas de radiodifusão portuguesa em Macau. A 18000 quilómetros da metrópole, Governo e CTT assumiram a liderança da experiência colonial na matéria, contra toda e qualquer lógica economicista. O território nunca permitiu, é certo, ambições de projecto lucrativo na língua minoritária, mas as sucessivas administrações locais, com maior ou menor elasticidade intencional, foram mantendo esse "luxo" financeiro. Vingou, afinal, a teoria da imprescindibilidade da rádio como um dos pilares da presença portuguesa neste cantinho asiático. Surgiram então 30000 MOP negociadas a braço de ferro para potenciar o início artesanal de uma referência da portugalidade. As dificuldades de financiamento balizaram desde sempre o dia a dia das emissões e limitaram a dimensão do projecto. Poucos eram os envolvidos; a estratégia adoptada agarrava-se a pragmatismos sem grande ambição histórica; e durante largas décadas houve poucas ambições de fuga a amadorismos, já então, anacrónicos.

A verba referida destinou-se, sobretudo, à aquisição do material necessário à estrutura inicial, mas os Correios tiveram de assegurar mais 12000 MOP anuais, com vista à manutenção dos serviços. A torre do relógio, no mesmo edifício que hoje alberga os CTT, na Av. Almeida Ribeiro, albergou o primeiro estúdio de emissão. E funcionários da companhia foram destacados para serviço complementar, com honras de agradecimento público pelo sacrifício oferecido em prol da evolução do território. Houve, porém, alturas em que as condições existentes deixaram mesmo de atingir os requisitos mínimos e a língua de Camões calou-se nos receptores. Mas as vontades voltaram sempre a conjugar força suficiente para o renascimento e reorganização da actual Rádio Macau.

Foi em 1933, a 26 de Agosto, anunciado em Macau o nascimento da primeira rádio ultramarina. O palácio da Praia Grande fomentava um instrumento facilitador da comunicação com o segmento português da população; a Península perdia a total dependência informativa dos órgãos de Hong Kong; a saudade ganhava um combatente inesperado; e meia dúzia de apaixonados do microfone davam corpo a um sonho que implicaria sacrifícios pessoais para manter de pé o projecto. Nascia a "CQN-Macau", que não evitou interrupções no tempo, sempre causadas pela incapacidade de tornear prejuízos, mesmo que estrategicamente assumidos à partida. O problema agudizava-se sempre que faltava o punho salvador responsável pela assinatura de mais um cheque de desconto urgente. Os CTT chegaram a emitir selos com o objectivo único de sustentar a rádio, enquanto os governos mostravam interesse na sua sedimentação. Contudo, os subsídios disponibilizados nem sempre foram realistas.

A evolução tecnológica e as exigências renovadas de um mundo cada vez mais politizado foram, mais recentemente, expulsando o puro amadorismo desse espaço de paixão íntima e repercussão pública. E talvez por isso tenha subido o tom crítico da sociedade civil, paulatinamente mais consciente das noções de profissionalismo implantadas nos últimos anos da Rádio Macau. Porém, a verdade é que a escassa audiência potencial e a exiguidade do espaço sempre obviaram consequências negativas na possibilidade de exploração de um universo publicitário. Sendo ele praticamente inexistente, nunca foi possível uma profusão radiofónica criadora de alternativas ao conceito de serviço público. Enquadramento limitado, com vantagens e desvantagens reconhecidas e objecto de longa discussão teórica... Em todo o mundo, desde sempre, e no futuro previsível.

Passados que estão 61 anos, a manutenção do canal português permite hoje leituras de homenagem ao sentido visionário desses radialistas pioneiros, capazes de passar a perna a colónias com motivações logísticas e geográficas mais facilmente legitimadoras do português em antena. E, também por isso, fica na história esta experiência asiática.

 

A Rádio Vila Verde

 

A essa rádio de serviço público surgiu um único complemento sério. Pedro José Lobo, figura proeminente da sociedade macaense, sustentou durante mais de uma década emissões em português na Rádio Vila Verde. Uma paixão na qual ainda hoje se reconhecem contornos de alguma ambição, e que sangrou significativamente os seus vastos

(Johnny Reis - foto acima e abaixo - nos tempos da Rádio Vila Verde nos anos 60)

rendimentos. A 6 de Março de 1952, depois de longo período de experimentação, entrava no ar a Rádio Vila Verde, com emissões em chinês e em português. A língua inglesa tinha tratamento especial e entrava também na emissão através da opção simultânea bilingue.

Velhos e bons tempos, comenta, saudoso, Johnny Reis. Actualmente a dirigir o arquivo discográfico da Rádio Macau, um dos mais antigos profissionais de rádio no território, está agora afastado do microfone, à frente do qual interpretou cerca de quatro décadas de transmissões em Macau. o recurso a actividades complementares ao serviço em antena provoca-lhe saudades. é certo. mas nenhum lamento transparece no discurso reconstitutivo de memórias confessadamente pouco vincadas. Pelo contrário, Johnny Reis deixa transparecer alguma "inadaptabilidade" aos novos conceitos imprimidos na rádio moderna. As condições técnicas precárias e os velhinhos "78 rotações" exigiam maior presença do autor dos programas; a televisão estava muito longe de fazer a sua aparição avassaladora na estatística das audiências; e a estratégia personalizada das emissões reflectia verdadeiros diálogos inesquecíveis com os ouvintes. Johnny Reis opta mesmo pela crítica: Não posso conceber duas músicas seguidas sem intervenção do locutor. explica. e hoje ouço programas inteiros durante os quais a sua presença

mal se nota. Puxando dos galões da experiência, Johnny Reis vinca essa saudosa convicção: Há sempre qualquer coisa a dizer aos microfones!

São marcas de um passado com alegrias inesquecíveis e tristezas inconfessadas. Johnny Reis, pragmático confesso e observador desatento, repescou ainda na memória um dos seus dias de maior emoção radiofónica. Infelizmente, diz, reconheceu posteriormente ter vivido em simultâneo o prenúncio dos últimos dias para as emissões em português na Rádio Vila Verde. Nos finais de 1966 a revolução cultural chinesa empolou temores de intervenção no projecto de Pedro José Lobo. O empresário deixou cair o canal português, cedendo aos argumentos do perigo de ataque à estação. Dias antes, Johnny Reis pressentira o início do fim do sonho privado em português: Aquela noite sem fim com leituras de comunicados do governador fica marcada mesmo em memórias distraídas como a minha. Das 18 às sete da manhã. mantivemos diálogo permanente com a população. Fechado no estúdio, numa rádio longe do actual conceito retocado de omnipresença, via repórteres, Johnny Reis estava afinal longe de saber o que realmente se passava. Era a rádio, contudo, o elo de ligação com a mensagem possível.

O canal chinês da Rádio Vila Verde ainda hoje emite, constatação reveladora do imperativo económico do fecho do canal lusitano, acelerado na altura pela conjuntura política desfavorável. As emissões cantonesas, essas podiam sobreviver em Macau, sem défice, segundo lógicas comerciais... Claro está, em razão de um painel publicitário com alvos definíveis no seio da grande maioria da população. O

que à história nenhum circunstancialismo retira são emoções ao microfone vividas por testemunhas oculares como Johnny Reis. No fundo, como em todas as situações de crise, Macau pôde, já então, beneficiar de uma corrente presa à racionalidade informativa. À escala própria do amadorismo então vigente, ouvidos colados ao receptor criaram amigos indispensáveis: os "heróis" da versão audível.

(1966)


Os primórdios da aventura radiofônica

 

Vale a pena repescar nos discursos da abertura oficial da "CQN-Macau" o testemunho da aventura comercial que a iniciativa representava, ainda antes da segunda Grande Guerra.

Esteve presente na inauguração a "nata" da sociedade, e o jornal a Voz de Macau reproduziu o discurso do seu primeiro director, Luciano da Costa Martins, no  qual eram destacadas as dificuldades financeiras do projecto: Já nos fins de Julho, 10 próximo passado, e quando se aguardava o orçamento com a verba necessária para pagamento do pessoal empregado nos serviços electrotécnicos, para então se fazer a inauguração, uma grande contrariedade surgiu, mas desta vez maior que as anteriores. Constatou-se que a quantia atribuída a esta Repartição não só não permitia a admissão do pessoal necessário ao serviço de rádio-difusão, como nem sequer chegava para a manutenção, como se tornava mister, de todo o pessoal empregado nos telefones e nas oficinas, tendo-me visto forçado a despedir 26 unidades de trabalho, o que muito perturbou, e que está perturbando, os serviços a cargo desta repartição. Que fazer, pois, em circunstâncias tais! Outro remédio não haveria senão adiar, sine die. a inauguração a que hoje se vai proceder, ficando o material a deteriorar-se por falta de uso, se não tivesse encontrado o mais franco auxílio de S.exa. o Encarregado do Governo, a quem apresento aqui os meus melhores agradecimentos, e ainda a oferta de dois zelosos funcionários que se prontificaram a trabalhar fora das horas do expediente, e sem qualquer espécie de remuneração, para que o posto não permanecesse silencioso. E noutra passagem do mesmo discurso: É pois nas condições expostas que vai passar a funcionar o serviço em causa, isto é, sem garantia quanto à regularidade das emissões, pois habituado a respeitar os compromissos tomados não quero prometer o que não sei se posso cumprir.

A verdade é que em 1938, a 2 de Maio, a "CQN-Macau" extinguia-se para dar lugar à "CRY-9-Macau". Uma solução de compromisso que a mantinha como património do Governo mas transferia grande parte do ónus da sua existência para a contabilidade dos CTT. A vida conturbada da estação não lhe permitia ainda, contudo, sonhos de eternidade. Fez-lhe companhia no tempo a Rádio Polícia, criada pela P.S.P., posteriormente chamada "XX9", e que funcionou na Esquadra n° 2, ao lado do Canídromo. Em 28 de Maio de 1941 surge o Rádio Clube de Macau, na sequência do fecho da "CRY-9-Macau" e a Rádio Polícia abandonava também a sua aventura. Justificou assim o óbito o comandante Eduardo Proença: Por já haver em Macau uma emissora a funcionar em razoáveis condições. E essa já teve uma vida mais prolongada, acabando por só ceder o lugar, em 17 de Eevereiro de 1962, à "ERM - Emissora de Radiodifusão de Macau", antecessora da TDM. 1970 foi o ano histórico para a autonomia financeira da radiodifusão macaense. A par da transferência para os estúdios da Xavier Pereira, a ERM passou a dispor de um orçamento próprio, evitando as demoras de aprovação caso a caso dos gastos mais prementes. Hoje, e por circunstâncias da transição administrativa para a China, volta a ser questionado o futuro da Rádio Macau, sobretudo no que respeita ao canal português.

 

Aproximar a metrópole das colónias

 

Retrocedendo no tempo, ao ano de 1963, um outro artigo publicado no jornal A Voz de Macau possibilita a repescagem da cultura das mentalidades então vigente, legitimadora do gasto dos dinheiros públicos nas rádios coloniais... O investigador francês Maurice Martelli descrevia em primeira página: "A grande utilidade da radiodifusão na propaganda das metrópoles e das colónias". Uma reflexão sobre a actividade no espaço francófono, cuja analogia foi estabelecida pelo jornal de língua portuguesa. Nesse artigo, defendia Maurice Martelli:

A rádio-difusão permitirá dar imediatas informações aos colonos acerca das flutuações do mercado de matérias primas tanto na metrópole como nos países estrangeiros e mesmo na própria colónia. Aqueles não ficarão, depois, à mercê de intermediários, hoje melhor informados do que eles. Esta imensa vantagem material é ainda mínima em relação ao conforto moral que os colonos sentirão, recebendo as notícias da mãe pátria e do estrangeiro, tomando, várias vezes por dia, contacto directo com a civilização. Assim, desaparecerá a impressão de solidão e abandono que o colonial conhece e à qual os caracteres melhor temperados, por vezes, reagem mal. Será contudo, um erro, não ver na rádio-difusão nas colónias mais do que um meio de informar e de distrair. Constitui por si mesmo um meio poderoso de acção, tanto para os colonizadores como para os indígenas. Aos primeiros fornecerá os elementos duma vida intelectual, da qual, com várias excepções, estavam completamente privados... As suas consequências são muito maiores com respeito aos indígenas. Sabemos como eles são curiosos e quantas notícias se propagam entre eles com inacreditável rapidez. Apreciam as longas tiragens, as conversações intermináveis; à falta de histórias verdadeiras repetem contos da carochinha. Quem os não tem visto, tanto em África como em numerosas outras colónias, curvados durante horas em volta de um narrador, imóveis e atentos ao encanto do que lhes dizem? São acima de tudo ouvintes. No dia em que os aparelhos de recepção lhes permitirem ouvir a sua língua e uma música adaptada aos seus hábitos e aos seus gostos, farão círculo em volta do altifalante. Comprarão logo aparelhos de T.S.F. como em certos territórios têm comprado fonógrafos aos milhares.

A inexistência de registos magnéticos antigos, acrescida da dificuldade em encontrar documentos escritos, dificulta o retrato das emissões da rádio, em Macau, desde os seus primórdios. Mesmo assim, é possível levantar algumas pistas. Em 1952, uma crítica radiofónica publicada em O Clarim, jornal de inspiração católica, mostra parte do que era o Rádio Clube de Macau e o que dela esperava a referida publicação. Referia-se o texto ao novo arranjo da série "Um conto de vez em quando...", que veio melhorar um pouco os limitados programas directos que a rádio emite. Sinceramente, gostámos mais desta emissão do que da do número inaugural. Houve mais naturalidade e menos declamação. No entrecho havia a leitura de duas cartas, ambas de recorte acentuadamente dramático. A primeira, quanto a nós, era desnecessariamente longa, mas este pequeno senão foi, em grande parte, contrabalançado pela boa dicção de Virgílio Brito que tem, na verdade, uma regular voz radiofónica.

 

Portugal... se não chover

 Outro retrato possível é o formado pela viva voz de Alberto Alecrim. Ainda em Macau, e a trabalhar no Gabinete de Comunicação Social, iniciou-se na rádio oficial em 1955, subindo na hierarquia até ser nomeado director, em 1978. Sempre fui, contudo, desde faxineiro a director, lembra este personagem de palavra solta e orgulho à mostra: Era essa a única postura possível para se fazer rádio na altura. O amadorismo puxava pelos limites da imaginação e os relatos de Alberto Alecrim estão cheios de exemplos que fizeram história em Macau.

A Emissora Nacional transmitia curtos períodos de emissão especial para Macau e Timor, mas a recepção era muito má no território. As pessoas corriam para os pontos mais altos da Guia e de Coloane com os seus pequenos portáteis, impelidos por essa paixão histórica dos relatos de futebol. Alberto Alecrim resolveu então apanhar as emissões num rádio-portátil, no terraço dos CIT, junto à cabine da locução. Ligava um fio ao rádio, outro à consolete, e a Emissora Nacional entrava, com certeza, pelas casas portuguesas. Com duas vantagens para Alberto Alecrim: por um lado servia o público; por outro, deixava cair a ligação quando o Sporting estava a perder. Entrava então da consolete e justificava-se: Devido às más condições de transmissão atmosféricas não é possível continuar a retransmitir os relatos.

Em 1970, outra engenhoca tecnológica fez história, quando da mudança para os estúdios da Xavier Pereira. O material era já viável, mas o local também não facilitava a captação dos relatos. Alberto Alecrim combinou o estratagema com uns amigos da P.S.P. e retransmitia através do posto da polícia localizado na Sidónio Pais, através da linha telefónica. O esquema era montado na sexta-feira para funcionar durante o fim de semana, e ninguém se chateava... A não ser, claro, o comandante da polícia, que ficava sem linha telefónica e só podia regressar ao gabinete na segunda-feira.

Entre várias outras histórias contadas com alegria desmedida por Alberto Alecrim, figuram muitas envolvendo gaffes ao microfone e fora dele, cometidas por um rol de aprendizes que desfilaram pelas emissões de Macau. Mas entre as que fizeram furor entre os seus amigos, lidera a da conquista do primeiro automóvel da rádio, assumida pelo director Luís Gonzaga Gomes como um sonho demasiado caro.

Em dia de festa importante no Palácio, Alberto Alecrim arrancou para reportagem com o equipamento necessário e duas gravatas na mão: uma para si, outra para o técnico. Foi então que resolveu jogar a sua cartada: alugou um riquexó e afixou-lhe grandes placas a dizer "ERM", anunciando estar em reportagem, quer em português quer em chinês. Em frente ao Palácio, o estranho veículo fazia, com grande espalhafato, manobras idênticas às praticadas pelos automóveis circundantes. O escândalo foi tal que no dia seguinte o secretário do governador mandava comprar um carro para a rádio através do fundo de turismo. Mas não estavam resolvidos os problemas de Alberto Alecrim: o director da rádio gostava de se deslocar na nova conquista e as reportagens ficavam a ver navios. Tempos depois o carro foi pintado com cores tão folclóricas que mais ninguém o quis usar sem ser em serviço ...



Agradecimentos à Revista Macau e ao Paulo Rego


Publicação Julho 2011