A DOCE CAMALENGA
Favorita dos chineses para combater os efeitos do calor estival sobre o organismo, a camalenga é utilizada em suculentos caldos mas é num doce - a camalengada - que a comunidade macaense lhe dá aplicação privilegiada.
Cecília Jorge
da série Tacho do Diabo da Revista Macau
publicada em Agosto 1993 - II Série nº 16
UMA das abóboras mais queridas dos chineses e portugueses de Macau, a camalenga (cambalenga ou camolenga), a que os chineses chamam tung-kuá (literalmente, "abóbora oriental") é aparentada com a que os portugueses chamam de abóbora-gila, ou chila, e também com a abóbora-carneira, sendo ambas usadas em doces e compotas portuguesas. É igualmente usada no Brasil, sendo conhecida por jerimu ou jirimu.
Forte, grande e pesada, a cambalenga é um dos produtos hortícolas que, pelo sentido pragmático dos chineses, vale a pena cultivar, pois a sua venda é rentável. Mas sem exageros. É que cada freguês leva apenas a talhada que lhe convém, uma de cada vez. Levar a abóbora toda só quando de tamanho adequado a uma sopa especial, preferindo, noutro caso, a sua congénere, a "cambalenga pequena", ou chit-kuá. Da camalenga tudo se aproveita, até a casca e as pevides, como iremos ver
Da cucurbita pepo maxima, (os ingleses chamam-lhe winter melon ou wax gourd) como diz João M. A. da Silva no seu interessante Repositório de Noções de Botânica Aplicada e Produções Vegetais Mais Usadas na China (Hong Kong, 1904), este fructo enorme é bem conhecido e é usado como vegetal. É refrigerante e demulcente, e considera-se o mais salutifero da sua classe. Os chinas costumam cozer os pedaços cortados com umafolha de mostarda salgada chung-chói para dar-lhe gosto. Usa-se também para fazer doces e conservas.
A dar-nos uma novidade (estava-se em princípios do século XX, claro está), o autor refere que ultimamente os doutores americanos e anglo-indianos recomendaram fortemente para empregar a graínha das sementes (desta abóbora) para expelir a solitária. Duas onças déstas graínhas frescamente tiradas, pisadas e misturadas com mel ou assúcar em forma de emulsão, são administradas pela manhã emjejum, seguidas. depois de uma ou duas horas. por uma dose de azeite castor.
Favorita, portanto, dos chineses em pleno Verão para combater os efeitos do calor estival sobre o organismo humano, a camalenga entra em muitos dos cozinhados macaenses de inspiração chinesa. E precisamente nas receitas mais caseiras, as do dia-a-dia de uma família mediana, com forte influência chinesa.
A abóbora pode, assim, neste campo, aparecer-nos num guisado com camarões secos, pato, com "orelhas de rato" (fungos), "sombrelos" (cogumelos) e ainda vermicelli de feijão mungo, mas é efectivamente em caldos, apoiada na cevadinha, que se acha a melhor maneira de aproveitar as suas potencialidades de mezinha refrigerante contra a detestada "calidez" termo aparentemente só conhecido no português de Macau, porque a existir nos dicionários de língua portuguesa, não traduz exactamente o sentido (medicinal) do termo. Trata-se de uma expressão concebida para designar o conceito de it-hêi (literalmente "ar quente") que em explicação muito simplificada, corresponde ao estado a que o organismo pode chegar quando a pessoa abusa de frituras, gorduras e outros alimentos com elevado teor de calorias, sem cuidar de o refrescar com vegetais, frutas e chás, emulsões ou caldos de raízes, grãos e ervas. O risco de atingir o limite da "calidez" depende do estado físico de cada pessoa, mas mais ainda do clima e da estação do ano...
Daí ter-se adaptado bem à comunidade macaense a camalenga nos caldos ralos, com que muitos dos grandes apreciadores desta abóbora, suculenta e saborosa (por via dos sabores que concentra de todos os outros ingredientes) adora ensopar o arroz cozido, para comer com peixe ou ovo salgado.
O caldo supremo desta camalenga - presente em quase todos os banquetes da estação estival -,
é mesmo o chamado "cabeça de bonzo", nome mais criativo do que o original em cantonense, que se limita a "terrina de abóbora" (tung-kuá chúng). Quem o "batizou" deve ter-se inspirado na apresentação do caldo, que é cozinhado e servido dentro de uma abóbora inteira, com a sua casca lisa e luzidia a lembrar a careca rapada dos monges budistas.
Poucos se aventuram a preparar a "cabeça de bonzo" em casa, sendo mais habitual irem comê-la aos muitos e bons restaurantes de comida cantonense em Macau e Ilhas, depois de encomenda prévia, já que leva muitas horas de trabalho esforçado. E é quando destinada a banquetes que comprova a veia artística e paciente dos chineses, porque servindo-se da casca rija e sólida da abóbora como matéria-prima, nela desenham e talham belos desenhos alusivos à ocasião, festivos, auspiciosos e inspirados: dragões, fénixes, sapecas, flores, e os caracteres da felicidade ou alegria.
Mas a gulodice trazida pela costela lusitana dos macaenses (e não é que os melhores doceiros, não desfazendo dos franceses, se encontram em Portugal?) leva-os a privilegiar uma vez mais, a aplicação desta abóbora em compotas e doces.
Assim, num meio termo entre o doce de gila e a compota de abóbora carneira cujas receitas antigas apresentamos para comparação, está a camalengada, (ou cambalengada), que nos enche de boas recordações dos pequenos almoços e lanches devorados em toalha de linho e debaixo de uma ventoinha ruidosa. Aí, as colheradas da docíssima, esfiapada e fresca compota eram empilhadas sobre quadradas bolachas de água e sal, as fininhas soda cream crackers da Jacob's, cujas latas, outrora de folha de flandres despidas de pintura serviam ainda para as nossas avós guardarem os cartões de boas festas e imagens dos santinhos, arrumarem a costura, ou usando apenas a tampa, colocarem as brasas para chamuscar a bebinca e o celicário.
Doce, doce camalenga!
RECEITAS |
CAMALENGADA
Abóbora camalenga (ralada) – 3 kgs
Açúcar em pedra – 1 kg
folhas de figueira - 6
Lava-se e descasca-se a abóbora, ralando-a em fios longos. Envolve-se a polpa ralada num pano limpo e espreme-se bem para retirar todo o líquido.
Branqueia-se a abóbora (i.e. escaldar rapidamente em água a ferver) e volta-se a espremer, guardando o líquido. Junta-se a esse líquido um litro de água e fervem-se as folhas de figueira (previamente lavadas, esfregadas com uma escovinha, limpas de nervuras e partidas em bocados), durante cerca de meia hora. Retiram-se as folhas de figueira e coloca-se o açúcar, que deve ficar em ponto de espadana. Junta-se então a abóbora ralada e coze-se, mexendo sempre, até o doce se soltar do fundo do tacho. Guarda-se de preferência em frascos fechados ou em potes de barro.
COMPOTA DE ABÓBORA CARNEIRA RIPADA
Abóbora carneira – 1 kh
Açúcar pilado – 1 kg
Corta-se a abóbora em talhadas compridas, limpa-se das pevides e tripa e ripa-se com um ripador de folha de Flandres. Põe-se ao lume tanto o açúcar como a abóbora em peso, e a água suficiente para dissolver o açúcar, que regula por quatro decilitros por quilograma. Quando o açúcar está em ponto de espadana, deita-se-lhe a abóbora e prolonga-se a fervura até que a calda fique bem grossa. Este doce pode levar-se a um ponto tão forte que depois seque facilmente; assim, dura muito tempo. Conservado em compota, pode modificar-se rapidamente, deitando-lhe gemas de ovos batidas e levando-o de novo ao lume até cozer os ovos, tendo o cuidado de mexer sempre.
Abóbora carneira, de água ou maçã de Hércules
É uma abóbora muito longa chegando a ter mais de um metro de comprido e cerca de 15 centímetros de diâmetro. Tem a casca de um verde muito claro e a carne muito branca. Tem aplicação usual na cozinha, onde se prepara cozida ou guisada, e na copa, onde se prepara ripada em doce ou cortada em talhadas, dando não só o doce de calda, mas também a abóbora coberta.
(in Carlos Bento da Maia, Tratado Completo de Cozinha e Copa, ed.1926)
COMPOTA DE GILA
Gila em fios (cozida) – 400 gr.
Açúcar pilado – 600 gr.
Toma-se uma abóbora gila bem madura e parte-se atirando com ela ao chão. Separam-se os bocados, aos quais se tira a tripa, empregando directamente as mãos, porque qualquer utensílio de ferro prejudicaria o doce. Deitam-se os bocados numa vasilha de ir ao lume, cobrem-se de água e põem-se a ferver até que, experimentando um bocado, ele largue bem a casca. Tira-se então do lume, separam-se a casca e as pevides e o restante, os fios, deita-se em água com sal durante 24 horas, depois em água sem sal, que se renova algumas vezes. Passadas outras 24 horas, escorre-se a gila, pesa-se e toma-se vez e meia o peso achado de açúcar pilado, com o qual se forma uma calda, dentro da qual se deita a gila até chegar a ponto de espadana. A compota fica pronta e pode deitar-se, depois de resfriar, em covilhetes. Também se guarda em pires que se expõem ao sol, para que o açúcar endureça à superfície. Em vez do açúcar, pode empregar-se vez e meia em peso de xarope simples.
(in Carlos Bento da Maia, Tratado Completo de Cozinha e Copa, ed.1926)
Agradecimentos à Revista Macau e à Cecília Jorge
Publicação Agosto 2011